| 24 maio, 2021 - 12:17

O dia em que um Tribunal decidiu o significado da palavra “foda”

 

“Gostaria de saber: há alguma divergência? Vou colher os votos”, avisou o desembargador Luiz Antonio Moreira Vidigal, que preside o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região, responsável pelo estado de São Paulo. A pergunta, protocolar, acabaria abrindo um portal no espaço-tempo do Poder Judiciário para que 68 desembargadores discorressem sobre os pormenores de

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“Gostaria de saber: há alguma divergência? Vou colher os votos”, avisou o desembargador Luiz Antonio Moreira Vidigal, que preside o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região, responsável pelo estado de São Paulo. A pergunta, protocolar, acabaria abrindo um portal no espaço-tempo do Poder Judiciário para que 68 desembargadores discorressem sobre os pormenores de uma palavra: “Foda.”

O debate se deu no dia 22 de fevereiro, durante uma sessão virtual do Tribunal Pleno – espécie de reunião de condomínio do TRT, em que os desembargadores se juntam para deliberar e por vezes julgar questões administrativas, disciplinares e judiciais envolvendo integrantes do próprio tribunal. Dentre os vários processos na pauta daquela segunda-feira, um versava sobre as acusações de parcialidade e falta de decoro de um juiz substituto, Josley Soares Costa. Era ele quem havia proferido o termo interdito.

O causo remonta a outubro de 2019, quando Soares Costa proferiu uma sentença favorável ao funcionário de um estacionamento que havia sido dispensado do serviço por justa causa. Indignado, o advogado da parte derrotada – ou seja, do empregador – resolveu vasculhar as redes sociais do magistrado, na esperança de encontrar algum indício de parcialidade. Achou um comentário no Instagram em que Soares Costa elogiava a foto de uma desembargadora crítica à reforma trabalhista aprovada em 2017, Ivani Contini Bramante. “Coisa linda do meu coração, a desembargadora mais foda do mundo”, escreveu ele. O advogado decidiu anexar uma cópia da postagem na reclamação disciplinar que apresentou ao Conselho Nacional de Justiça em abril de 2020. Após tramitar por um ano, o processo administrativo foi finalmente levado a julgamento, naquela sessão do Tribunal Pleno.

Oprimeiro voto foi proferido pelo corregedor Sergio Pinto Martins, relator do caso. Didático, Martins explicou que a suspeita de parcialidade do juiz carecia de provas. Mas recomendou que Soares Costa recebesse uma advertência por comportamento inadequado, pois o uso da palavra “foda” feria um dispositivo da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que obriga o magistrado a manter “conduta irrepreensível na vida pública e particular”.

Em seguida, o presidente do tribunal abriu a sessão para divergências. E foi então que começou o debate semântico.

“A meu ver, está claro que o senhor juiz não foi grosseiro”, argumentou o desembargador Rafael Pugliese Ribeiro. “A palavra disponibilizada no nosso acervo linguístico não é boa ou ruim. Bom ou ruim é o uso que se faz dela. O termo foi usado sem o sentido de agressão, mas dentro de uma relação de amizade.” Ribeiro enumerou exemplos que atestavam a polivalência da palavra: “Aparece como título de música de MC Alysson [É Foda], da fanpage de Caetano Veloso no Facebook – ‘Caetano é Foda’ –, ou em títulos de livros, como A Sutil Arte de Ligar o F*da-se e F*deu Geral, os dois do autor Mark Manson [por motivos de clareza, ele não se referiu aos asteriscos na explanação].” Lembrou, por fim, que o termo havia sido utilizado “em importante evento de reunião de agente de Estado” e mencionou a frase dita pelo presidente Jair Bolsonaro num encontro ministerial em abril do ano passado: “Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meus, só porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha.” Ribeiro votou pelo arquivamento.

O próximo a falar foi o desembargador Ricardo Artur Costa e Trigueiros, que votou de modo semelhante: “A magistratura nesse caso não sai desgastada pela expressão utilizada pelo doutor Josley. Pelo contrário, ele estava usando a palavra para elogiar a magistrada.” Já o desembargador José Ruffolo preferiu rebater a defesa de Ribeiro: “Eu divirjo em primeiro lugar quanto ao que foi dito pelo meu colega e amigo doutor Rafael. Nenhuma das citações que ele fez foi proferida por um magistrado.” Não só votou pela condenação, como propôs uma pena mais pesada no lugar da advertência: censura. “Determina o Código de Ética que o magistrado deve se portar escorreitamente tanto na vida pública quanto na privada”, afirmou.

A desembargadora Ivete Ribeiro revoltou-se: “Eu estava aqui ouvindo os votos e me lembrando de uma reunião ministerial em que foram falados 41 palavrões. Só o senhor presidente da República falou 33 palavrões. Então, que hipocrisia é essa? Num país em que um líder de governo fala vários palavrões e ninguém faz nada, eu vou condenar um colega que falou uma palavra sem ter um significado de baixo calão? Acompanho a divergência.” Já a desembargadora Cíntia Táffari recorreu ao argumento contrário: “Fico pensando em qual Brasil queremos, o modelo de conduta que queremos. No meu ver, essa é uma escolha ética, de postura. Eu não gostaria de ser elogiada nesses termos.” Ela votou pelo prosseguimento do processo.

Odebate se estendeu por quase duas horas, com outros desembargadores proferindo seus votos. O desembargador Antero Arantes Martins considerou que a palavra “foda” fora utilizada por Soares Costa “com mau gosto, mas não com má intenção” – e, por isso, decidiu votar pelo arquivamento. Voto semelhante foi dado pelo desembargador Jonas Santana de Brito: “Palavras que já se incorporaram à linguagem rotineira do povo não devem mais ser consideradas chulas. Considero chula, deprimente e horrorosa a miséria que cada vez mais se abate sobre o Brasil, com mortes provocadas pela pandemia da Covid-19.” Já o desembargador Armando Augusto Pinheiro Pires explicou que a absolvição poderia abrir um grave precedente: “Daqui a pouco o juiz vai na rede social e escreve ‘caralho’. E a gente vai deixando, vai deixando.”

O julgamento terminou em empate: 34 votos pelo prosseguimento e 34 pelo arquivamento, o que acabou beneficiando o juiz Soares Costa. Eram necessários 47 votos para o processo ter continuidade. Procurado pela piauí, ele não quis ser entrevistado.

Minutos antes de sair o resultado, a desembargadora Maria José Bighetti Ordoño Rebello expressou seu choque com o uso da palavra, mas se disse incapaz de “manchar o prontuário de um magistrado por causa de um único deslize”. Ponderou: “Tenho certeza de que, depois de passar por todo esse aborrecimento, o doutor Giovani nunca mais vai utilizar essa expressão.”

O nome do doutor não era Giovani – era Josley. F…

Revista Piauí


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