O uso de mecanismos de inteligência artificial já começou a mudar a rotina de escritórios de advocacia e tribunais brasileiros e terá grande impacto na solução de milhões de processos, afirma o presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), Renato Cury, em entrevista.
Reeleito para comandar a entidade da advocacia paulista que se dedica à prestação de serviços e ao oferecimento de cursos de capacitação, Cury diz que o principal problema da classe hoje é a proliferação de faculdades de direito que não formam profissionais com preparo adequado para a profissão.
O presidente da AASP, que conta com mais de 80 mil associados, afirma que em tempos de polarização política os advogados devem atuar como pacificadores e defensores do pluralismo de ideias.
Qual a sua avaliação sobre aplicativos que oferecem o serviço de busca e contratação de advogados?
Renato Cury – A relação entre advogado e cliente é uma relação de confiança, e isso a tecnologia não vai mudar. A tecnologia pode abrir portas para facilitar a busca, mas aplicativos que indicam profissionais têm até um viés de mercantilização, o que é contrário aos próprios princípios da advocacia.
A confiança no aplicativo é muito sensível, é algo que, de certa forma, poderia ser imprudente. A parte precisa saber quem é o profissional que está atendendo e saber se ele tem respeito aos preceitos éticos. Os aplicativos não vão conseguir suprir isso.
Confiança e credibilidade você consegue transmitir no olho a olho. Aqueles que tentarem se valer de outros instrumentos podem ter surpresas desagradáveis.
Houve perda de qualidade nas decisões judiciais no Tribunal de Justiça de São Paulo com a adoção dos julgamentos virtuais, nos quais os desembargadores apenas enviam os votos aos colegas e não há discussão presencial sobre os processos?
Renato Cury – A questão do julgamento virtual é necessária em razão do grande volume de processos em andamento no tribunal. O advogado tem a prerrogativa de requerer o julgamento presencial, se entender que isso é o ideal para o seu caso.
Mas nem todos os processos demandam julgamentos presenciais, e isso permite que os desembargadores consigam se debruçar naqueles casos mais complexos. Não houve prejuízo na qualidade das decisões, que dependem mais do perfil de quem está julgando do que da modalidade, presencial ou virtual.
Qual foi o impacto da obrigatoriedade do uso dos sistemas digitais para a apresentação e trâmite de ações, como ocorreu no tribunal paulista?
Renato Cury – A advocacia sofreu um pouco nesse período de transição, mas hoje já convive com isso. De certa forma, a vinda do processo digital trouxe uma maior agilidade na tramitação dos processos. Hoje o advogado não precisa mais se deslocar até o fórum para fazer o protocolo físico ou fazer uma cópia. Ele faz isso de seu escritório.
Dentro dessa realidade tecnológica, também há o uso da inteligência artificial. Há programas à disposição dos advogados para ajudar a entender como um juiz julga determinadas matérias, com base nas sentenças anteriormente proferidas por ele. Isso faz com que o advogado tenha uma previsibilidade muito maior a respeito do resultado do seu processo e possa aconselhar seu cliente a tomar uma melhor decisão, às vezes até estimulando a realização de um acordo.
Como o sr. vê o uso da inteligência artificial no sistema judicial?
Renato Cury – Hoje a inteligência artificial já é uma realidade. Já sabemos, por exemplo, que no estado do Paraná um juiz desenvolveu robôs que analisam os casos novos, verificam se ele já julgou processos semelhantes e trazem as decisões a ele. Obviamente isso ainda depende de uma interação humana, na verificação de tudo aquilo que foi trazido pelo robô.
Mas a inteligência artificial vem até por uma necessidade, já que temos uma Justiça massificada. Considerando que temos mais de 100 milhões de processos em tramitação no país, é humanamente impossível você ter uma análise detalhada de cada um dos casos.
Hoje já existem sistemas que são utilizados por escritórios de advocacia no qual o robô acessa o sistema do tribunal diariamente e identifica a propositura de ações contra os clientes do escritório. Esse robô já faz o download da petição inicial e faz a leitura do pedido feito na petição. Em seguida, envia uma minuta de email informando detalhes sobre a ação e a média de condenações aplicadas pelo juiz do caso. Em alguns casos, também já sugere a realização de acordos.
Também já há sistemas no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal que estão sendo desenhados para o uso da inteligência social em prol de uma otimização da prestação jurisdicional.
É possível que, no futuro, para determinados casos, as sentenças sejam elaboradas por robôs?
Renato Cury – Sentenças em um futuro muito próximo serão dadas por robôs. É claro que os juízes terão muito cuidado, pois continuarão sendo obrigados a assinar as sentenças. Não pode ser uma linha de produção, a interação humana ainda vai ser necessária, até para que seja feita uma conferência, porque aquela sentença pode impactar a vida de um cidadão. Deixar isso ao exclusivo critério de um sistema, acho ainda complicado, mas estamos caminhando para isso. É uma realidade que deverá ser aperfeiçoada ao longo do tempo.
Qual é a repercussão da maior oferta de profissionais no mercado, em razão do aumento no número de faculdades de direito nos últimos anos?
Renato Cury – Esse é hoje o principal problema da advocacia. Existe um grande número de faculdades de direito no Brasil que funcionam sem a menor condição. Existe um estelionato educacional no nosso país, porque as pessoas são estimuladas a ingressar nesses cursos, a pagar durante cinco anos uma mensalidade, e ao final essas pessoas não têm a condição sequer de passar no exame da Ordem [dos Advogados do Brasil]. Essas pessoas acabam criticando o exame da Ordem, dizendo que é algo elitista, mas ele busca proteger o cidadão.
O MEC [Ministério da Educação] é o responsável, uma vez que é aquele que autoriza o funcionamento dos cursos. A OAB tem exercido um protagonismo nessa discussão, de pedir que o MEC pare de aprovar a abertura de novos cursos. É preciso fazer um trabalho cuidadoso de revisão e só permanecerem os cursos com condições mínimas.
Como o sr. vê a posição da advocacia em tempos de polarização ideológica?
Renato Cury – Não podemos alimentar esse antagonismo. Pelo contrário, o advogado é o pacificador, tem que trabalhar na defesa ferrenha do Estado democrático de Direito, do diálogo, da construção das pontes. Temos que mostrar que a advocacia está unida em prol de uma pauta de avanços civilizatórios, e não retrocessos.
Não devem imperar a raiva e o preconceito. Posso não concordar com determinadas posições, mas nem por isso eu preciso trabalhar para acabar com a pessoa que pensa diferente de mim. A pluralidade de ideias é que levará à reafirmação do Estado democrático de Direito.
O deputado Eduardo Bolsonaro trouxe à tona o debate sobre o emprego de um novo AI-5. Como o sr. vê essa discussão?
Renato Cury – Falar em AI-5 no século 21 não traz qualquer benefício para a construção dos caminhos que são necessários para o país. Há uma série de pautas, a da educação, a do saneamento, a do desenvolvimento econômico, que superam qualquer discussão que se possa levantar em prol do AI-5.
O ministro da Justiça, Sergio Moro, disse que não recebe o presidente do Conselho Federal da OAB, Felipe Santa Cruz, sob a justificativa de que este teria adotado ‘postura de militante político-partidário’. Como o sr. avalia essa situação?
Renato Cury – Independentemente de polarizações ideológicas, o presidente do Conselho Federal exerce uma representatividade e precisa sim ter um diálogo muito próximo com o ministro da Justiça, que comanda a Polícia Federal. É preciso conviver com as diferenças. Elas não podem suplantar os interesses institucionais.
A Lava Jato trouxe acusações sobre escritórios e advogados que teriam participado de crimes em esquemas de corrupção. Como prevenir a atuação de advogados em delitos?
Renato Cury – O advogado que agir fora dos limites legais tem que ser exemplarmente punido. Não é admissível que qualquer ilegalidade seja relevada.
Mas precisamos ter o cuidado de não confundir o advogado com o seu cliente, e hoje isso tem sido feito de forma deliberada, muitas vezes nas redes sociais, no sentido de criminalizar o direito de defesa. Muitos advogados são atacados de forma injusta porque estão exercendo a sagrada atividade profissional de defender alguém.
Jornal do Brasil