Um dos dias mais tristes da vida do cabeleireiro Sidney Sylvestre Vieira, 31, conta ele, foi quando ouviu o barulho das grades sendo cerradas atrás de si. Não entendia exatamente do que estava sendo acusado, não conhecia os nomes citados, e só restou a ele rezar para que o engano fosse desfeito rapidamente.
Não foi o que aconteceu.
Mesmo sendo réu primário, com emprego e residência fixa, a Justiça manteve Vieira preso por um ano e quatro meses preventivamente pela suspeita de ter participado da morte de um homem que, diz ele, nunca viu.
A polícia e o Ministério Público não têm provas do contrário; não há evidências de que ele tenha participado da morte do professor aposentado Miguel Elias, 74.
O principal suspeito do crime, o marceneiro Rubens Henrique Pungirum, apontou o nome “Sidney” em um primeiro momento, mas, depois, recuou dessa versão. Disse ter citado nomes porque foi agredido por policiais.
Vieira foi solto no último dia 13 por ordem do juiz Gustavo Henrichs Favero, que revogou a prisão preventiva e deu a ele oportunidade de responder ao processo em liberdade. Foi uma surpresa para Vieira, que via todos os seus recursos recusados desde o ano passado, até pelo Tribunal de Justiça.
Ele ainda pode ser condenado. Para o cabeleireiro, seria a prova de que a Justiça tarda e falha. A outra grande decepção foi descobrir que um inocente na prisão é mais bem tratado pelos presos do que pelos agentes penitenciários.
Vieira, que tem quatro filhos, falou com a Folha na última quinta-feira (21), no salão onde faz bicos desde que saiu da prisão.
De todos os erros do seu processo, qual deles…
Você chegou a ler o meu processo?
Li sim, boa parte dele.
Cara, você viu tanta coisa que tinha ali? Tinha tanta coisa errada, os erros estavam tão na cara. Isso me fez chegar a uma conclusão: eles não ligam pra você. Não ligam para nada. Porque não é a vida deles. Não é parente, não é uma pessoa conhecida, que tem um bom dinheiro. Se fosse uma pessoa conhecida, de posses, eles iriam dar a maior atenção. Fiquei preso um ano e quatro meses sem dever absolutamente nada. Nada! Sabe o que fazia na prisão? Cortava o cabelo de outros presos para conseguir mandar dinheiro para fora, para os meus filhos.
De todas as autoridades, investigadores, delegado, promotor, juíza, procurador e desembargador, qual você acha que mais errou?
A juíza. A juíza foi a pior de todas. Eu pedi para juíza me ouvir. Mas ela só fez algumas perguntas e mandou eu permanecer calado. Aí, eu comecei a chorar, porque ela não me deixou falar. Eu disse: ‘A senhora poderia me ouvir, por favor? Eu queria falar’. Ela respondeu: ‘O senhor permanece calado’. Me tratou mal. Eu nunca mais vou esquecer.
Você esperou até aquele momento, da audiência, para poder contar tudo o que vinha sofrendo?
Isso. Se ela me ouvisse, se ela chegasse a conversar comigo, eu iria dizer para ela: ‘Procure onde está o erro, porque eu nunca saí de Embu.’
Mas ela não teve nenhuma atenção para mim. Nenhuma.
[A juíza Alena Cotrim Bizzarro é impedida de falar do processo pela Lei Orgânica da Magistratura. Em nota, o TJ diz que Vieira foi ouvido e que o procedimento da audiência está nos autos: “Durante a audiência foi informado sobre seu direito de permanecer em silêncio, mas recebeu a orientação da magistrada de que aquele seria o momento em que teria a oportunidade para apresentar sua versão dos fatos. Optou por responder as questões, formuladas pela juíza e pela defesa.”]
Você encontrou o Rubens [Henrique Pungirum] na prisão?
No primeiro dia, eu pedi para o policial me mostrar quem era porque não conhecia. O policial disse: ‘Sidney, esse daqui é o Rubens’.
Você perguntou por que ele fez isso?
Ele disse que teve uma pressão muito grande dos policiais, e deu um nome Sidney, só Sidney. Ele não sabia de nada [de mim]. Inventou um nome e pronto. Os policiais da SAP [Secretaria de Administração Penitenciária], que presenciaram a conversa, queriam entrar na audiência para falar para juíza que eu não tinha nada a ver. O Rubens queria falar que eu não tinha nada a ver. Ele pediu, ouvi ele falando, estava do meu lado. Mas a juíza mandou nos retirar.
A juíza olhou para você?
Não. Ela falou comigo de cabeça baixa. Foi lendo o computador e perguntando, mais nada. Não queria saber. Se fosse uma pessoa com dinheiro, as coisas teriam sido diferentes.
Qual foi o momento mais difícil nesses meses?
Todos os momentos foram difíceis, mas o pior deles foi quando entrei na inclusão.
No dia em que foi preso?
Isso, o primeiro dia em que cheguei ao CDP [centro de detenção provisória]. Pensei: ‘será que vou morrer nesse lugar?” Nunca vou esquecer desse dia porque fiquei com muito medo dos bandidos. Eu não sabia de nada, nunca tinha passado por isso. Minha vida era trabalhar, desde os 14 anos.
Seu medo era de ser morto, estuprado?
Não, ninguém relou em mim não.
Seu medo, digo…
Ah, sim. O medo era de morrer. Você está em um mundo de gente, vê cada coisa que nem imagina, que a gente não é acostumado. Imagina você numa sala com 42 caras. Tem cara que ainda está na ira das drogas, ou com problemas psicológicos, muito irritado.
Foi ali que caiu a ficha?
Eu pensei que fosse embora. Os policiais que foram me prender em casa me conhecem de muito tempo. Eu cortava cabelo no centro de Embu, cortava até o deles. Quando eles me viram, eles mesmo disseram: ‘Deve ter algum engano mesmo. Eu conheço você, pô’.
Quando chegaram na delegacia, perguntaram se eu tinha vendido algum carro, porque tinha acontecido um problema. Eu disse que não. Disseram que eu estava sendo acusado e se conhecia algum Rubens, eu disse que não.
Fui preso em uma sexta-feira 13. No mesmo dia, fui na delegacia, depois para Taboão [da Serra, São Paulo] para fazer [exame de] corpo de delito, e já fui direto para o CDP. No mesmo dia. Quando cheguei, eu olhava… e pensava: ‘será que Deus me enviou aqui para morrer?’ Nossa, bate o desespero. Eu só sabia chorar. Chorei por três meses.
Fiquei sem comer direito, não dormia direito, até porque lá não dá. Só vivia tomando água e chorando. Eu pensei: ‘está errado, eu vou embora’. Eu estava firme mesmo. ‘Daqui a pouco eu vou embora, eu tenho fé.’
Aí, teve uma hora, depois daquela audiência [com a juíza], aí, acabou minha esperança.
Os criminosos chegaram a questionar qual era a sua ‘bronca’?
Chegaram, chegaram. Disseram que iriam ver qual era o meu problema. Eu sou conhecido por muita gente daqui, até lá dentro tinha um moleque, de que eu cortei o cabelo quando tinha oito anos.
Os bandidos investigaram e viram que você era inocente?
Falaram que iriam me investigar, mas muitos deles lá, que me conheciam, falaram que eu não tinha nada a ver, disseram: ‘esse cara é tranquilo’.
Os criminosos foram mais justos?
E [fui] mais bem tratado [por eles]. Porque lá eles [agentes] tratavam você como se fosse um lixo. Nem cachorro é tratado daquele jeito. Eles querem o respeito, mas eles mesmo não dão o respeito. Me chamaram de vagabundo, de tanta coisa. E você não podia dizer nada. Vai dizer o quê? Eu dizia pra eles que não tinha feito nada. Eles diziam: ‘Agora, todo mundo não fez nada’.
Como soube da sua liberdade?
O meu advogado foi lá me avisar. ‘Arruma suas coisas que você vai embora.’ Nem acreditei, ajoelhei, comecei a chorar. Eu não estava esperando. Tinha acabado de tomar paulada [do TJ, que negou o habeas corpus]. Deus é fiel mesmo. A gente acredita só em Deus. Na Justiça não dá.
Foi todo mundo gritando. ‘Graça a Deus, cara, você vai embora’. Os caras diziam: ‘Você é uma pessoa boa, não merece estar aqui.’ Muitos choraram. Ali existem pessoas que erraram, mas todos somos seres humanos, temos coração.
E agora, para frente?
Agora é trabalhar. O tempo não volta atrás. O que eu perdi não consigo mais. Como ver meu filho Lorenzo começar a andar, a falar. De estar ao lado da minha mulher na hora que ela mais precisava, quando perdeu a criança [após um aborto espontâneo no terceiro mês de gestação, em julho].
E se você for condenado?
Eu não sei o que fazer. Aí a Justiça vai mostrar ser falha mesmo.
Folha de S. Paulo
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