Em decisão que inaugura um novo flanco na disputa jurisprudencial e de competências entre a Justiça comum e a do Trabalho, a 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (PR) decidiu que não é de sua alçada analisar a possibilidade de vínculo empregatício de trabalhadores por aplicativos, posto que essa é uma relação contratual regida pela Justiça estadual. A argumentação foi fundamentada em um julgamento do Supremo Tribunal Federal (RCL 59.795)
“O E. STF, quando do julgamento da ADC 48, da ADPF 324, do RE 958.252 (Tema 725), da ADI 5.835 e do RE 688.223 (Tema 590), firmou posicionamento no sentido de que a CRFB/1988 permite formas alternativas de relação de trabalho e, conforme decisão proferida na Reclamação nº 59.795, julgada no dia 19.05.2023, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, a competência para a análise da validade (ou não) do contrato firmado entre as partes é da Justiça comum estadual”, diz o acórdão, relatado pelo desembargador Edmilson Antonio de Lima, cujo voto foi seguido por unanimidade.
Portanto, toda a base argumentativa dos desembargadores teve origem em reclamações julgadas pelo Supremo, sendo a principal delas a que derrubou decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG) que reconheceu vínculo de emprego entre um motorista e a empresa Cabify (que não atua mais no Brasil). Tanto nessa ação quanto em outras similares, o STF entendeu que os trabalhadores “uberizados” são terceirizados e “pejotizados”, ainda que a relação seja direta com as empresas de aplicativos.
“Verifica-se, assim, a posição reiterada da Corte no sentido da permissão constitucional de formas alternativas da relação de emprego, conforme também já se reconheceu em casos de afastamento da ilicitude de terceirizações por meio da contratação de pessoas jurídicas constituídas para prestação de serviços na atividade-fim da entidade contratante: Rcl 39.351 AgR (Rel. Min. ROSA WEBER, Red. p/ Acórdão Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, julgado em 11/5/2020) e da Rcl 47.843 AgR (Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Red. p/ Acórdão Min. Alexandre de Moraes Primeira Turma, DJe de 7/4/2022)”, diz trecho da fundamentação citada pelo relator na 1ª Turma do TRT-9.
O processo em questão (uma ação civil pública) foi ajuizado em 2021 pelo Ministério Público do Trabalho e teve como alvo a plataforma Parafuzo, que oferece profissionais especializados em serviços domésticos como limpeza, montagem de móveis e passadoria. O MPT entrou com a ação no contexto da crise da Covid-19, pedindo que a empresa seguisse uma série de normas de segurança do trabalho e fornecesse equipamentos de proteção individual (EPIs), além de ter requerido a constatação de vínculo empregatício entre auxiliares de limpeza e montadores de móveis e a plataforma.
O MPT também pediu “pagamento de indenizações por dano patrimonial e dano moral coletivos, no valor total de 2% do faturamento bruto da ré no último exercício”. Nesse caso, os procuradores pediram que o vínculo fosse reconhecido a partir do modelo de trabalho intermitente, “caso não seja reconhecido o contrato de trabalho clássico”.
A decisão do TRT-9 foi tomada no julgamento do recurso do MPT, que havia perdido a causa em primeira instância, na 12ª Vara do Trabalho de Curitiba. A juíza Fabiana Meyenberg, em 2 de maio deste ano, rejeitou os pedidos formulados pelos procuradores relacionados a vínculo empregatício e outros direitos trabalhistas. Meyenberg chegou a conceder tutela de urgência em relação a questões sanitárias da Covid-19 (fornecimento de álcool 70%, por exemplo), mas rejeitou outras premissas.
Conflito
Turmas dos TRTs e do Tribunal Superior do Trabalho têm divergido em relação à natureza contratual dos trabalhadores por aplicativo — e até à competência da própria Justiça Trabalhista para analisar esses casos. Em outubro, o TRT-2 ordenou que a empresa Rappi registrasse todos os seus entregadores na CLT, em julgamento de ação civil pública ajuizada pelo MPT. Em setembro, o juiz Maurício Pereira Simões, da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo, condenou a Uber (Uber Eats) a pagar indenização de R$ 1 bilhão por danos morais coletivos e registrar os motoristas que atuam por meio da plataforma, também no âmbito de uma ação do MPT.
No TST, em 27 de outubro, a 2ª Turma assinou acórdão reconhecendo vínculo de emprego de um motorista e afirmando que a Uber pune os trabalhadores com bloqueio, coloca-os em uma espécie de ranqueamento de corridas, estabelece as demandas para cada profissional e remunera-os diretamente, “tudo de acordo com as condições empresariais estipuladas unilateralmente por ela”.
A empresa alfere lucros, disseram os ministros, a partir de um contrato clássico de trabalho, em que a subordinação, seguindo as transformações contemporâneas, é feita por meio do algoritmo. Outros pontos citados foram a gamificação, novo conceito que, na visão de parte da Justiça do Trabalho, faz com que os profissionais de aplicativos sigam ordens no mesmo modelo de um jogo, com recompensas e gratificações; e os bloqueios feitos pelas plataformas, punições que influenciam diretamente no comportamento do trabalhador.
Assim como a Parafuzo, as outras plataformas argumentaram que não há vínculo porque não há subordinação do trabalhador, que teria características de autônomo. Elas alegaram ainda que não comercializam corridas, entregas ou serviço de limpeza, mas, sim, tecnologia, o que é visto por parte do Judiciário como uma tentativa de manipular a jurisprudência no Brasil (outros países estão em guerra judicial com Uber e afins; na Alemanha, por exemplo, há decisões desde 2015 proibindo atuação da empresa naquele país).
No momento, a 2ª, a 3ª, a 6ª e a 8ª Turmas da corte superior reconhecem esses trabalhadores como empregados dos aplicativos, enquanto a 1ª, a 4ª e a 5ª Turmas rechaçam o vínculo. Já a decisão do TRT-9 tem um caráter de ineditismo, pois foi tomada em âmbito de ação civil pública, assim como as que envolvem Uber Eats e Rappi, e não em casos individuais de trabalhadores, que estão pulverizados pelos tribunais trabalhistas.
Em meio aos conflitos jurisprudenciais, as empresas têm recorrido ao Supremo para anular as decisões que declaram vínculo desses trabalhadores com elas — ainda que haja discussão se a corte tem competência para ser tribunal revisor de questões trabalhistas. Nesta semana, a 1ª Turma derrubou o vínculo declarado pelo TRT-3 entre motorista e Cabify, e ainda oficiou o Conselho Nacional de Justiça para que seja feito um levantamento “das reiteradas” decisões da Justiça do Trabalho que estão supostamente descumprindo precedentes do STF.
A plataforma Parafuzo foi representada pelo advogado Murilo Galeote, do escritório Almeida, Galeote & Nóbrega.
“A Justiça do Trabalho, de forma responsável e republicana, passou a adotar os entendimentos firmados nos tribunais superiores, em especial o STF, o qual, firme nos postulados da livre iniciativa e na liberdade de concorrência, chancela a licitude da atuação das plataformas digitais no país, responsáveis por garantir dignidade para milhões de brasileiros e brasileiras que buscam formas de complementarem suas rendas”, afirmou o advogado.
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Processo 0000198-92.2021.5.09.0012