“Nas camadas menos favorecidas, a Justiça só tem uma cara: a cadeia.” Essa afirmação poderia ter partido de um advogado, sociólogo ou ativista dos Direitos Humanos, mas ela é de uma juíza criminal. Muito além da bagagem acadêmica e profissional, ela carrega a sensibilidade e a sabedoria de uma mulher que superou desafios e atingiu objetivos que a grande maioria não imaginaria possíveis a uma ex-boia-fria e doméstica.
A história de Antonia Marina Aparecida de Paula Faleiros, juíza titular da 1ª Vara Criminal de Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador, inspira não só mulheres, mas toda a comunidade jurídica. A menina que começou aos 12 anos a trabalhar no corte de cana na comunidade de Barro Amarelo, em Serra Azul de Minas (MG), recorda-se do conselho de sua mãe: “Estudar era a única chance que tínhamos, dizia ela.”
Na busca por um futuro melhor, Antonia partiu para a cidade grande aos 14 anos. Belo Horizonte foi o destino e o trabalho na roça virou passado. Os estudos continuaram, mas a adolescente precisava trabalhar para se manter. O emprego que conseguiu foi o de doméstica e a garota vislumbrou a possibilidade de conseguir também um teto na casa da patroa, mas logo veio a frustração a reboque de um preconceito escancarado.
“A casa tinha um quartinho de empregada, algo remanescente da senzala, mas não pude ocupá-lo. A patroa disse que eu seria uma ‘tentação’ para o marido dela, como se não fosse dever de um homem de 60 anos respeitar uma menina”, revela a juíza. Firme em seus objetivos, ela trabalhou na “casa de família” e passou a dormir na rua, mas sem abandonar o conselho materno.
Certo dia, Antonia comprou um jornal para procurar uma melhor oportunidade de trabalho e se deparou com o que viria a ser a guinada em sua vida. “Vi um anúncio de concurso para oficial de justiça do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Não exigia nível superior e as matérias eram Língua Portuguesa, Matemática e Noções de Direito.” As duas primeiras estavam sob controle, mas a parte jurídica se revelou um desafio.
A propaganda do concurso também anunciava a venda de apostilas de Direito e um cursinho. Sem dinheiro para comprá-las e participar das aulas, Antonia foi até a escola preparatória. A pretexto de obter alguma informação, ela verificou que uma funcionária do local reproduzia as cópias dos cadernos de estudo em um mimeógrafo e que algumas folhas borradas eram descartadas em uma lixeira.
Com a coleta dessas folhas nas várias vezes em que precisou voltar ao cursinho, a estudante conseguiu montar a sua apostila. A funcionária teria percebido, desconfia Antônia, mas não quis constranger e começou a deixar as cópias borradas em um outro cesto, separadas do lixo comum. “Não podemos fazer as pessoas felizes, mas podemos minimizar a infelicidade”, declara Antônia, referindo-se ao ato da desconhecida.
Necessidade e vocação
Em 1984, aos 21 anos, veio a aprovação, mas Antonia correu sério risco de ser considerada inapta ao cargo. Após superar a fase da prova escrita, teve três oportunidades para obter êxito no exame psicotécnico. Nas duas primeiras, com um discurso ensaiado para impressionar, conforme conta, foi reprovada. Na última chance, conquistou a vaga ao responder à examinadora por que pretendia ser oficial de justiça.
“Falei para a examinadora que há vocação e necessidade. No meu caso, era necessidade, porque morava na rua”, lembra Antonia. A partir daí, empossada no cargo público, passou a desfrutar de um padrão socioeconômico que nunca tivera, mas sem deixar de dar sequência aos estudos. O ambiente forense a fez conhecer e gostar do universo jurídico. A situação se inverteu e o que começou por necessidade virou vocação.
Concluído o antigo colegial (atual ensino médio), Antônia foi aprovada no vestibular para o curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, formando-se em 1991. Em 22 de dezembro de 2002, ela tomou posse no cargo de juíza do Tribunal de Justiça da Bahia. Ela atua na comarca de Lauro de Freitas há dez anos. Na Universidade Federal da Bahia, fez mestrado em Segurança Pública, Justiça e Cidadania.
A história de sucesso e superação da magistrada é contada com humildade: “reverencio quem veio antes e celebro as novas gerações”. Segundo ela, a “igualdade formal” entre homens e mulheres se consolidou e deve ser considerada uma conquista, mas o “padrão mental coloca a mulher em um plano inferior e a discriminação vem travestida de proteção”.
“Quando se fala em mulher de sucesso, 90% se referem àquela que se destacou em um universo tido como masculino”, constata a juíza. Como exemplo dessa avaliação, Antônia diz que escutou vários comentários do tipo “essa mulher atira melhor do que homem”. Explica-se: antes de ingressar na magistratura, ela foi campeã de tiro em alvo em movimento. A disputa foi promovida pela Academia de Polícia Civil de Minas Gerais.
A juíza Antonia Faleiros faz questão de afirmar que “ando a pé, viajo de ônibus e vou a todos os lugares” para melhor conhecer a comarca. É assim em Lauro de Freitas, onde desenvolve um trabalho social junto a uma comunidade carente, e também foi nas localidades pelas quais passou. Para além da filantropia, ela leva à população dessas periferias uma faceta humana do Judiciário e mostra que sonhos podem se tornar reais.
Conjur