| 29 abril, 2022 - 12:30

Como a Uber se blinda na justiça contra vínculo trabalhista de motoristas

 

EM ABRIL DE 2020, um motorista de Belo Horizonte entrou com uma ação trabalhista contra a Uber. Desligado da plataforma após dois anos de serviço prestado, o trabalhador pediu o reconhecimento do vínculo empregatício e o pagamento de despesas previstas na lei trabalhista brasileira, como hora extra e adicional noturno. A causa teve valor fixado

EM ABRIL DE 2020, um motorista de Belo Horizonte entrou com uma ação trabalhista contra a Uber. Desligado da plataforma após dois anos de serviço prestado, o trabalhador pediu o reconhecimento do vínculo empregatício e o pagamento de despesas previstas na lei trabalhista brasileira, como hora extra e adicional noturno. A causa teve valor fixado em R$ 100 mil.

A primeira instância de julgamento, na 46ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, negou o pedido. A sentença levou em conta que o motorista não precisa entrar em contato com a Uber para avisar que não irá trabalhar em determinado dia, por exemplo, como uma evidência de falta de subordinação – essencial à caracterização do vínculo empregatício. O entendimento foi seguido pelo Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais, o TRT-3. Vitória da Uber.

Mas o motorista recorreu das decisões, e, em fevereiro de 2022, o julgamento da causa foi designado à 6ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho. Às 9h do dia 23 de fevereiro deste ano, um novo julgamento decidiria, de maneira definitiva, a legitimidade do pedido do motorista. Por causa das duas vitórias anteriores, tudo parecia favorável à empresa. Na véspera, no entanto, um pedido foi apresentado em conjunto pela Uber e pelo trabalhador solicitando a retirada do caso da pauta. No lugar, as partes apresentaram um acordo para homologação.

Mesmo em clara vantagem, a Uber acordou com o motorista o pagamento de R$ 12 mil pela liquidação de qualquer problema na relação contratual. O acordo foi aceito e homologado pelo tribunal.

O que pode parecer uma derrota para a Uber, que terá que pagar o motorista mesmo com duas decisões a seu favor, é na verdade mais uma grande vitória. Com o acordo, a empresa impediu que uma turma, na maior instância trabalhista do Judiciário, reconhecesse o vínculo empregatício com um de seus motoristas. A ideia não é economizar dinheiro, mas evitar a criação de jurisprudência: um predatório trabalho de longo prazo para desestimular novos processos e, caso eles ocorram, garantir uma decisão favorável.

Com uso de jurimetria, uma sofisticada análise de dados de tribunais do trabalho brasileiros, a Uber criou uma estratégia para evitar perder processos de motoristas. O método utilizado é complexo, mas a ideia é simples. Ainda não existe uma decisão consolidada sobre o vínculo de trabalho entre motoristas e aplicativos de transporte, abrindo espaço para interpretações dos magistrados, que recorrem às decisões judiciais anteriores para balizar sua decisão atual. Isto é: na hora de julgar um processo do tipo, o responsável olha o que outros juízes na mesma situação fizeram. Isso não determina sua escolha, mas serve como um parâmetro. A Uber, então, analisa a propensão de um determinado magistrado ou tribunal específico julgar casos em favor do motorista – e não da empresa.

Se existe chance de a empresa perder, um acordo é oferecido ao motorista, evitando o registro de uma derrota no tribunal. Se a possibilidade maior é de a plataforma sair vitoriosa, a empresa não se mexe e espera o julgamento. Com isso, sentenças contrárias ao reconhecimento de vínculo de trabalho são sempre registradas, enquanto possíveis sentenças a favor do vínculo são antecipadas por um acordo, evitando a formação de jurisprudência.Empresa faz o que o TRT-3 classificou como ‘intento de simular falsa uniformidade jurisprudencial’.

Reprodução

O fenômeno foi percebido por Ana Carolina Leme, analista judiciária do TRT-3. Em sua tese de mestrado, ela aponta que os acordos são propostos pelas plataformas sempre em segunda instância, geralmente após vencer em primeira decisão e o trabalhador recorrer. Chama atenção a proximidade na data do julgamento e dos acordos, muitas vezes feitos na véspera – assim que vem à tona qual é o magistrado ou turma responsável pelo processo.

Acordos judiciais não são ilegais. Pelo contrário: eles preveem soluções consensuais e desoneram o serviço judiciário brasileiro. O modo como a Uber se utiliza deles, porém, passa longe do interesse na resolução dos conflitos. Escolhendo os casos em que oferecerá acordos não pelo mérito da causa, mas pela propensão à sentença negativa, a empresa faz o que o TRT-3 classificaria posteriormente como “intento de simular falsa uniformidade jurisprudencial”. Dar a impressão de que, judicialmente, existe consenso sobre o tema do vínculo empregatício de motoristas de aplicativo – quando, na verdade, não há.

Para Marcelo Nunes, presidente da Comissão de Jurimetria e Análise Preditiva da OAB-SP, no entanto, essa prática “não desregula a formação de consenso judiciário”. Segundo ele, o uso da técnica por empresas é uma imposição da realidade, pois existem processos demais e não seria o ideal geri-los “com base em achismo e intuição”.Em nenhum processo analisado o vínculo de trabalho foi reconhecido.Apesar de reforçar o caráter legal do uso das ferramentas e de não apontar desrespeito à formação de jurisprudência por seu uso, Nunes pinta uma disputa entre empresas e o Poder Judiciário: “Não faz sentido proibir que as empresas proponham acordos para que um dissenso jurisprudencial possa se propagar no tempo. As empresas devem correr para fazer acordos, e os tribunais devem correr para uniformizar sua jurisprudência”.

Dados levantados por Leme apontam que, até julho de 2018, o TRT-3 havia analisado, em segunda instância, pouco mais de 30 processos individuais contra a Uber pedindo reconhecimento de vínculo de trabalho. Destes, 14 foram considerados improcedentes e 12 tiveram acordo. Em nenhum o vínculo de trabalho foi reconhecido.

Mesmo com a manobra, entretanto, a Uber chega perto de reconhecer a legitimidade da solicitação dos motoristas. Um processo tramitado em 2017 no Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo foi descrito por Leme como “um primeiro indício” da estratégia de conciliação seletiva da empresa. Nele, a Uber pagou ao motorista, em um acordo assinado no dia anterior ao julgamento, valor igual ao pedido no processo, sem qualquer negociação.

O caso chamou atenção porque o acordo foi firmado apenas dois meses depois de a empresa vencer em primeira instância, alegando que era ela que prestava serviço ao motorista, e não o contrário.


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