Em sua atuação na epidemia de Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro não cometeu os delitos de exercício ilegal da medicina (artigo 282 do Código Penal) e de perigo para a vida ou saúde de outrem (“expor a vida e a saúde de outrem a perigo direto e iminente”, conforme artigo 132 do Código Penal). Além disso, não praticou crime contra a humanidade, nem ato de improbidade administrativa, nem falhou ao demorar a comprar a vacina da Pfizer.
É o que afirmam, em parecer, os professores de Direito Constitucional e Direito Administrativo Ives Gandra da Silva Martins, Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marques, Adilson Abreu Dallari e Dirceo Torrecillas Ramos.
O parecer foi encomendado pelo senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), líder do governo na Casa, para subsidiar os membros da base governista que compõem a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 na elaboração de voto a ser apresentado em separado ao relatório final do grupo.
No documento, os docentes apontam que nenhuma atitude de Bolsonaro configurou o crime de exercício ilegal de medicina. “Pelo contrário, todas as manifestações e atitudes do presidente da República se pautaram em estudos científicos, no Parecer 04/2020 do Conselho Federal de Medicina e no princípio da autonomia do médico, para no caso concreto, prescrever o medicamento que entender mais eficaz, desde que com a anuência do paciente”.
Além disso, eles opinam que a participação do presidente em eventos públicos não configura o crime de perigo para a vida ou saúde de outrem, pois ele não teve dolo de ameaçar tais pessoas.
Os professores também analisam que nenhuma atitude de Bolsonaro pode ser considerada ataque generalizado ou sistemático contra a população civil por motivo político, configurando crime contra a humanidade, conforme previsto no artigo 7º do Estatuto de Roma, sujeito a julgamento pelo Tribunal Penal Internacional. Isso porque a atuação do governo buscou “evitar o contágio da Covid-19 nos povos indígenas”.
E a gestão Bolsonaro não é culpada pelo colapso da saúde de Manaus em janeiro, pois repassou recursos e enviou equipe do Ministério da Saúde — declaram os professores —, lembrando que estados e municípios têm autonomia e competência para adotar as medidas que entenderem necessárias para conter a epidemia.
A Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 e o parecer dos professores Miguel Reale Jr., Sylvia Steiner, Helena Regina Lobo da Costa e Alexandre Wünderlich não acusaram o presidente dos crimes de estelionato (artigo 171 do Código Penal), corrupção passiva (artigo 317) e advocacia administrativa (artigo 321), afirmam os docentes.
Eles ainda ressaltam que não ficou provado que o presidente “violou patentemente” qualquer direito ou garantia individual ou direito social. Portanto, não cometeu o crime de responsabilidade previsto no item 9 do artigo 7° da Lei 1.079/1950. E se tivesse cometido esse ou outro delito de responsabilidade, caberia exclusivamente ao procurador-geral da República promover tal acusação.
Sem culpa
Ives Gandra, Samantha Marques, Adilson Dallari e Dirceo Torrecillas Ramos opinam que a decisão do Supremo Tribunal Federal de que estados e municípios também têm competência para implementar medidas sanitárias fez com que o papel da União no combate à epidemia ficasse “bastante reduzido”.
“Em face da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 6.341, o papel da União no combate à epidemia ficou bastante reduzido, pois ficou consignado que a competência seria concorrente, e que os estados e os municípios poderiam adotar a forma que desejassem para combatê-la. Transferiu-se, à evidência, a responsabilidade direta do combate àquelas unidades federativas, passando a ser supletivo o combate pela União, não mais formuladora do ‘planejamento’ e da ‘promoção’ da defesa contra a calamidade pública, mas acolitadora das políticas que cada unidade federativa viesse a adotar na luta contra o flagelo”, afirmam os professores.
A demora do governo Bolsonaro em comprar a vacina da Pfizer não configura negligência ou inoperância, dizem os docentes. Segundo eles, houve apenas o “necessário cuidado em face da legislação sobre licitações e contratações então vigente”.
Série de crimes
Um grupo de juristas coordenado pelo ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior divulgou parecer de 226 páginas preparado para a CPI da Covid no Senado em que aponta uma série de crimes cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro no combate ao avanço da epidemia no país. O documento será avaliado pelo relator da comissão, senador Renan Calheiros (MDB-AL).
O documento conclui, entre outras coisas, que, conforme apurou a CPI, está evidente que Bolsonaro encabeça uma “gestão governamental deliberadamente irresponsável e que infringe a lei penal, devendo haver pronta responsabilização”.
Além de Miguel Reale Júnior, assinam o documento Sylvia H. Steiner, Helena Regina Lobo da Costa e Alexandre Wunderlich. No documento, os juristas afirmam que a responsabilidade penal do presidente da República é a do mandante, organizador e dirigente da conduta de seus subordinados, em especial do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e, portanto, a resposta penal pode ser agravada.
“Os fartos elementos probatórios estão a demonstrar a existência de ‘crime de responsabilidade’ (artigo 7º, número 9, da Lei 1.079/1950), de crimes contra saúde pública, como os crimes de epidemia (artigo 267 do Código Penal) e de infração de medida sanitária preventiva (artigo 268 do Código Penal), além da figura do charlatanismo (artigo 283 do Código Penal); de crime contra a paz pública, na modalidade de incitação ao crime (artigo 286 do Código Penal); de crimes contra a Administração Pública, representados pelos crimes de falso (artigos 298 e 304 do Código Penal) e de estelionato (artigo 171, parágrafo 3º, c/c art. 14, II, ambos do Código Penal), de corrupção passiva (artigo 317 do Código Penal), de advocacia administrativa (artigo 321 do Código Penal) e de prevaricação (artigo 319 do Código Penal)”, diz trecho do parecer.
Os juristas também sustentam que o governo perpetrou crimes contra a humanidade — conforme o artigo 7º do Estatuto de Roma. “A cidade de Manaus foi palco de experiências e projetos absolutamente desastrosos e maléficos à saúde da população, conduzidos pelo governo federal, ao arrepio das evidências científicas e das recomendações dos pesquisadores e profissionais da saúde”, afirmam.
Além disso, os juristas analisam as reiteradas críticas do presidente às vacinas contra a Covid-19, seu comportamento em promover reiteradamente aglomerações, em desrespeito às normas sanitárias, e a falta de coragem na imposição de medidas impopulares, mas absolutamente necessárias.
“O conjunto da obra revela um quadro desolador de desrespeito aos direitos humanos, seja nas frases e atos do presidente da República, a ridicularizar o medo, a dor, a morte, seja ao não assumir o papel que lhe competia na condução superior da administração do país de coordenação, junto com estados e municípios, da prevenção da disseminação que teria poupado milhares de perdas”, sustentam Miguel Reale Júnior, Sylvia Steiner, Helena Regina Lobo da Costa e Alexandre Wunderlich.
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