| 21 abril, 2021 - 07:32

O triste fim da Justiça do Trabalho: a super-hipossuficiência e a lei do retorno

 

Por Otavio Calvet, juiz do Trabalho Lendo o excelente artigo publicado neste domingo (18/4) aqui na Conjur pelos advogados Maurício de Figueiredo Corrêa da Veiga e Luciano Andrade Pinheiro, automaticamente me veio à mente a obra de Lima Barreto “O triste fim de Policarpo Quaresma”. Pode ser que a conexão entre os textos não seja verdadeira, até porque não possuo

Por Otavio Calvet, juiz do Trabalho

Lendo o excelente artigo publicado neste domingo (18/4) aqui na Conjur pelos advogados Maurício de Figueiredo Corrêa da Veiga e Luciano Andrade Pinheiro, automaticamente me veio à mente a obra de Lima Barreto “O triste fim de Policarpo Quaresma”. Pode ser que a conexão entre os textos não seja verdadeira, até porque não possuo capacidade para análises literárias, mas como a arte importa pelo que ela produz no destinatário, achei por bem expressar o que a reflexão dos colegas me produziu.

O STF, não é de hoje, demonstra sua insatisfação com os rumos da jurisprudência da Justiça do Trabalho, sendo o principal fator de mudança na forma de se interpretar e aplicar o Direito do Trabalho, invocando valores que, entre nós, não eram normalmente considerados, como a livre iniciativa e a liberdade econômica. Veja-se tudo o que foi produzido acerca da terceirização, o julgamento da legislação de emergência do período da pandemia (que autorizou acordos individuais em redução de salários e suspensão dos contratos), a constitucionalidade do trabalho intelectual através de pessoa jurídica, a natureza civil/comercial do vínculo de representantes comerciais e dos transportadores autônomos de carga.

Até aí, natural, questão de interpretação que, uma vez pacificada pelo STF, pode-se, no máximo, concordar ou discordar, mas nunca deixar de aplicar. A mim sempre causou preocupação a tendência de se desqualificar um trabalhador como tal, desfigurando-se a natureza da relação de trabalhista para civil/comercial, pois creio haver necessidade de uma tutela mínima protetiva para qualquer tipo de trabalhador, e não apenas para aquele que está inserido numa relação de emprego celetista. Para não pairarem dúvidas, defendo a criação de uma legislação mínima protetiva para o ser humano trabalhador (que não seria a CLT), independentemente do tipo de relação jurídica estabelecida com o tomador dos serviços.

Daí a minha preocupação. Como bem analisado pelo texto acima mencionado, uma coisa é o STF entender que uma relação não possui natureza empregatícia, mas civil ou comercial; outra coisa é a questão envolvendo fraude aos preceitos trabalhistas, com alegação de existência de vínculo de emprego. Até algum tempo atrás não havia maiores dúvidas sobre a competência para julgamento da alegação de fraude: como a pretensão é de reconhecimento de vínculo de emprego e a competência se fixa abstratamente pela causa de pedir e pelo pedido, a Justiça do Trabalho seria a competente conforme artigo 114 da Constituição. Se o que se pede é um vínculo de emprego, a matéria é estritamente oriunda das relações de trabalho, logo, nossa competência.

Entretanto, há algum tempo esse posicionamento vem sendo desconstruído. Antes desta recente decisão em Reclamação Constitucional (sobre o transportador autônomo de carga — Rcl 46356 RS), o STF já havia apontado a mesma solução nas questões que envolviam o reconhecimento da sucessão trabalhista em sede de recuperação judicial e nas alegações de desvirtuamento de contratos administrativos com a Administração Pública.

Em ambos os casos o pedido e a causa de pedir remetiam à competência trabalhista, mas o Supremo fixou a competência inversa: primeiro há necessidade de se discutir na Justiça comum se havia ou não a sucessão trabalhista na recuperação judicial ou se o contrato administrativo seria válido para, somente em caso negativo, a questão chegar à Justiça do Trabalho.

Na época, a comunidade jurídica trabalhista já estranhava o fato, pois claramente havia uma inversão de valores. Como um juiz comum, que não possui competência trabalhista, vai verificar se o caso cuida de fraude aos preceitos trabalhistas? O juiz comum analisará tais questões usando, por exemplo, o princípio da primazia da realidade decorrente do princípio da proteção trabalhista?

Não é com surpresa, portanto, que recebo a notícia da decisão liminar da ministra Carmem Lúcia. Trata-se de uma continuidade de entendimento que esvazia a competência da Justiça do Trabalho. Agora, o que move minhas reflexões é a motivação dessa tendência que busca evitar à Justiça do Trabalho o poder de analisar se relações jurídicas classificadas como de natureza civil ou comercial são apenas simulacros de relações trabalhistas, ou melhor, de emprego e, nese caso, autorizar que o juiz do trabalho efetue o reconhecimento do vínculo com todos os direitos trabalhistas inerentes a tal condição.

E aqui voltamos a um tema recorrente da atualidade: o voluntarismo das decisões judiciais. Sim, respeito quem pensa o contrário, mas esse sinal invertido de competência somente se justifica a partir da constatação de que há potencialmente uma enorme diferença de resultado em uma ação movida na Justiça comum, em que a premissa será o autor provar o alegado vício no negócio jurídico estabelecido, e na Justiça do Trabalho, onde a presunção será favorável ao trabalhador, independentemente de quantos contratos, pactos, aditivos ou documentos tenham sido assinados.

Quem é da área sabe: na Justiça do Trabalho usualmente alega-se a hipossuficiência do trabalhador como atestado de incapacidade. Em um raciocínio simplista, transforma-se a fragilidade do empregado em um superpoder capaz de alterar a realidade retroativamente, alterando-se todas as bases do que restou avençado, sem se medir as consequências do ato.

Um trabalhador que pactuou labor através de pessoa jurídica, com pagamento mensal obviamente mais elevado (e que recolheu Imposto de Renda em alíquota inferior), num passe de mágica (sentença) consegue o melhor dos dois mundos: remuneração majorada com pouca tributação durante o período em que trabalhou através da sua pessoa jurídica e, depois, o reconhecimento retroativo do vínculo de emprego com todos os direitos trabalhistas apurados sobre esse valor maior de remuneração. Um negócio milionário (literalmente).

A cultura da “super-hipossuficiência” forjada pela advocacia e inflamada pelos juízes é a grande responsável pela aversão que existe à Justiça do Trabalho, ao medo de suas decisões e ao seu contínuo esvaziamento. E o estranho é que parcela da magistratura parece não se importar, ou melhor, até se orgulhar. Algo como: se o mercado nos odeia é porque estamos no caminho certo. Se o Supremo nos restringe, é sinal que somos vanguarda e não podemos perder nossas raízes históricas. Façamos tudo para evitar ou driblar as decisões do STF. E volta e meia vamos escrever artigos criticando o mundo, os juízes do capital, os vendidos e traidores da causa, vamos inundar os grupos de WhatsApp usando nossos teclados como artilharia, ao mesmo tempo em que desconstruirmos os inimigos da causa.

O que a maioria parece não perceber é a ilusão que a defesa dessa “causa” por magistrados, além de indevida e inadequada, pois não cabe à magistratura adotar postura ideologicamente a favor de nenhum dos jurisdicionados, realmente mudará o mundo do trabalho para melhor. Não é preciso fazer pesquisa científica para se observar que a cada ano a inadequação da atual legislação trabalhista produz um ambiente totalmente desfavorável ao ser humano trabalhador. Em quase 24 anos de magistratura trabalhista vejo o número de trabalhadores formais reduzir paulatinamente, sendo já considerado por muitos ser um privilégio estar com “carteira assinada”. Só 30% da população ativa se enquadra atualmente como empregado celetista.

Tal qual Policarpo Quaresma, a Justiça do Trabalho muitas vezes protagoniza um patriotismo ingênuo, uma defesa cega de uma causa como se existisse apenas uma única solução. E, assim como a personagem, já se encontra ridicularizada a ponto de se lhe retirar a competência mais óbvia: dizer se há ou não vínculo de emprego. Taxados de “loucos”, melhor afastar os juízes do Trabalho, deixando-lhes cada vez com um papel menor dentro do cenário institucional, condenados a atuar dentro do próprio “sanatório” que eles criaram.

Ao que parece, chegamos a um ponto em que nem adiantará querer aplicar o ordenamento jurídico de forma voluntarista, a favor ou contra os trabalhadores. O que nos resta é o vazio. Talvez tenhamos esquecido que existe uma lei universal que princípio nenhum consegue superar: a lei do retorno.

Conjur


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