| 8 março, 2021 - 15:42

ARTIGO: A insegurança jurídica do nosso país em tempos de pandemia

 

Por Gladstone Heronildes, Advogado Há muita controvérsia doutrinária no âmbito da competência legislativa concorrente dos entes federados, principalmente quanto a sobreposição e ou suposta hierarquia entre decretos municipais e estaduais quando conflitam. Alguns doutrinadores dizem não haver hierarquia entre tais competências legislativas/legiferantes administrativas entre estados e municípios mas dizem, no entanto, prevalecer a norma que

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Por Gladstone Heronildes, Advogado

Há muita controvérsia doutrinária no âmbito da competência legislativa concorrente dos entes federados, principalmente quanto a sobreposição e ou suposta hierarquia entre decretos municipais e estaduais quando conflitam.

Alguns doutrinadores dizem não haver hierarquia entre tais competências legislativas/legiferantes administrativas entre estados e municípios mas dizem, no entanto, prevalecer a norma que for mais abrangente, ou seja: se for a do Estado, esta prevalecerá e, se for o decreto do município o de maior abrangência, este é o que deverá prevalecer.

A contrario sensu, o entendimento de outros doutrinadores e órgãos jurisdicionais pátrios, com fundamento no art. 30, I e II da CF, é de que a competência legislativa do município quanto a questões sanitárias ou de defesa da saúde é de natureza meramente SUPLEMENTAR e não concorrente, sendo cediço que assim vaticinam com espeque na decisão liminar proferida na ADPF 672 da lavratura de ninguém menos que sua excelência, a autoridade das autoridades da nação, o Sr. Ministro Alexandre de Moraes.

No caso potiguar, entre o decreto estadual e o do município do Natal, como o do estado é mais abrangente, penso eu que aquele deverá ser o que irá prevalecer; infelizmente. (CF – arts. 23, II; 24, XII e art. 30, I e II).

Portanto, lamentavelmente, quanto ao embasamento jurídico, a governadora está amparada, ainda que em dispositivos do Diploma Substantivo penal brasileiro, arts. 268 e 330 do CPB que já deveriam ter sido declarados como não recepcionados pela Novel Carta Magna de 1988, uma vez que conflitam com Princípios inalienáveis de garantia das liberdades individuais nela contidos.

A Lei Federal 13.979/20 dispõe sobre as linhas gerais das medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019 e assim vaticina em seu art. 3o., verbis:

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas:

I – isolamento;

II – quarentena;

III – determinação de realização compulsória de:

a) exames médicos;

b) testes laboratoriais;

c) coleta de amostras clínicas;

d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou

e) tratamentos médicos específicos;

IV – estudo ou investigação epidemiológica;

V – exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver;

VI – restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por rodovias, portos ou aeroportos;

VII – requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e

VIII – autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, desde que:

a) registrados por autoridade sanitária estrangeira; e

b) previstos em ato do Ministério da Saúde.

§ 1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.

§ 2º Ficam assegurados às pessoas afetadas pelas medidas previstas neste artigo:

I – o direito de serem informadas permanentemente sobre o seu estado de saúde e a assistência à família conforme regulamento;

II – o direito de receberem tratamento gratuito;

III – o pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas, conforme preconiza o Artigo 3 do Regulamento Sanitário Internacional, constante do Anexo ao Decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020.

Pois bem, o art. 3o. do Anexo ao Decreto Federal no. 10.212/20 delineia as regras gerais no âmbito internacional para a tomada dessas medidas sanitárias e assim preconiza, verbis:

Artigo 3. Dos Princípios.

  1. A implementação deste Regulamento será feita com pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas.
  2. A implementação deste Regulamento obedecerá à Carta das Nações Unidas e a Constituição da Organização Mundial da Saúde.
  3. A implementação deste Regulamento obedecerá a meta de sua aplicação universal, para a proteção de todos os povos do mundo contra a propagação internacional de doenças.
  4. Os Estados possuem, segundo a Carta das Nações Unidas e os princípios de direito internacional, o direito soberano de legislar e implementar a legislação a fim de cumprir suas próprias políticas de saúde. No exercício desse direito, deverão observar o propósito do presente Regulamento.

O que se constata é que o novel decreto do governo do estado do RN, com vigência a partir de hoje, 06/03/21; bem como os arts. 268 e/ou 330 do CPB estão frontalmente em desarmonia com o inciso III do art. 3o. da Lei Federal 13.979/20, como também em dissonância com os dispositivos contidos nos incisos II e XV do art. 5o. da CF que trata dos direitos fundamentais dos cidadãos, senão vejamos, verbis:

TÍTULO II
DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
CAPÍTULO I
DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

Pelo que se depreende desses dispositivos constitucionais que tratam dos direitos fundamentais do cidadão, este só pode ser obrigado a fazer alguma coisa em virtude de lei, mas esta lei precisa ter amparo constitucional e o Decreto Governamental do RN, tal como foi concebido, está em total discrepância com o inciso III do par. 2o. e com o Par. 1o., ambos do inciso VIII, insculpidos na Lei 13.979/20, pois estes exigem, primeiro, o pleno respeito às liberdades fundamentais das pessoas e, segundo, porque impõe, diga-se de passagem, sem a devida comprovação científica de resultados efetivos, a restrição da liberdade dos cidadãos e mitigação do direito constitucional de ir ir vir através de um toque de recolher nos domingos e feriados.

Ocorre, no entanto, que o art. 268 do CPB está em vigor, verbis:

CP – Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940.

Art. 268 – Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único – A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

Destarte, se não declarada a inconstitucionalidade desse decreto estadual OU se ele for escorreitamente obedecido, a despeito de sua inconstitucionalidade, o que não deveria acontecer, a pessoa que desobedecer a este absurdo de ficar trancado em casa nos domingos e feriados, pode vir a ser presa arbitrariamente com esteio numa lei penal anacrônica de 1940 sem respaldo na CFB e se isto não é um modelo inaugural de ditadura, eu não sei mais o que é ditadura nem quebra do Estado Democrático de Direito!!!

Gladstone Heronildes
Advogado.


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