| 20 outubro, 2020 - 15:30

O acordo de não persecução penal retroage para alcançar os processos em curso? E até qual momento essa retroatividade deve incidir?

 

Por Rodrigo Leite | Telegram: https://t.me/pilulasjuridicasSTFSTJ | Instagram: @rodrigocrleite A Lei n. 13.964/2019 (denominada de Pacote Anticrime) promoveu diversas alterações legislativas entre as quais está a contida no art. 28-A do CPP, denominado de acordo de não persecução penal (ANPP). Nessa postagem não iremos abordar os requisitos para a celebração do acordo. Aqui, o propósito é debater

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Por Rodrigo Leite | Telegram: https://t.me/pilulasjuridicasSTFSTJ | Instagram: @rodrigocrleite

A Lei n. 13.964/2019 (denominada de Pacote Anticrime) promoveu diversas alterações legislativas entre as quais está a contida no art. 28-A do CPP, denominado de acordo de não persecução penal (ANPP). Nessa postagem não iremos abordar os requisitos para a celebração do acordo. Aqui, o propósito é debater tão somente acerca da (ir)retroatividade do acordo e seu alcance nas ações penais em curso.

A norma tem conteúdo misto ou híbrido e sua retroatividade, em si, não é objeto de maiores discussões; o grande debate, todavia, reside em saber em qual momento ou até qual fase do processo penal essa retroatividade deve incidir.

Sobre o tema, 4 (quatro) correntes se formaram, sendo que três delas são debatidas por Leonardo Barreto Moreira Alves, Fábio Roque Araújo e Karol Arruda (Pacote Anticrime Comentado. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 121).

Uma primeira vertente sustenta que o acordo somente pode ser celebrado até o recebimento da denúncia, pois se o acordo é denominado de “de não persecução” ele somente poderia ser celebrado até o início da persecução, cujo marco seria o recebimento da denúncia. Essa corrente tem fortes argumentos pela própria nomenclatura do instituto e pelo fato da homologação do acordo estar entre as atribuições do juiz das garantias. Esse entendimento foi adotado no Enunciado 20 do Encontro Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça: cabe acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia e também no Enunciado 30 da Procuradoria-Geral de Justiça e da Corregedoria do Ministério Público de São Paulo: aplica-se o artigo 28 do CPP nos casos em que, oferecida a denúncia, o juiz entenda cabível a proposta de acordo de não persecução penal.

Numa segunda posição, defende-se que o acordo de não persecução penal poderia ser celebrado até o início da instrução penal. Essa posição foi adotada pelo Ministério Público de Minas Gerais após o Conselho Nacional do Ministério Público editar as Resoluções 181/2017 e 183/2018, mas antes da edição do Pacote Anticrime.

Uma terceira corrente argumenta que o acordo de não persecução penal (ANPP) deve ser celebrado até a sentença. Essa posição é defendida pelo Ministério Público de Santa Catarina (assim, cumpridas todas as condições objetivas e subjetivas do instituto, pode haver proposta de ANPP mesmo após o recebimento da denúncia, até antes da sentença). Tal posição também veio a ser adotada pelo Tribunal de Justiça e pelo Ministério Público de Minas Gerais por intermédio da Portaria Conjunta n. 20, de 23 de março de 2020. Essa é a posição de Andrey Borges de Mendonça (Lei anticrime: um olhar criminológico, político-criminal, penitenciário e judicial. São Paulo: RT, 2020, RB-11.21).

Uma quarta posição entende que o ANPP pode ser celebrado a qualquer momento antes do trânsito em julgado.

No Superior Tribunal de Justiça esses entendimentos já renderam divergência entre a Quinta e a Sexta Turmas, o que levou o Supremo Tribunal Federal a afetar o tema a julgamento pelo Plenário – ver HC 185.913/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes. Entre as questões que o STF irá decidir estão: 1) O ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando do surgimento da Lei 13.964/2019? 2) Qual é a natureza da norma inserida no art.28-A do CPP? 3) É possível a sua aplicação retroativa em benefício do imputado?

No STJ, a Quinta Turma acolhe a primeira posição. Entende que o ANPP alcança processos em curso, mas somente até o recebimento da denúncia. A Sexta Turma, por sua vez, compreende que o ANPP atinge processos em curso até o trânsito em julgado da condenação. Assim decidiu a 6ª Turma do STJ acerca do tema: 

“É reconsiderada a decisão inicial porque o cumprimento integral do acordo de não persecução penal gera a extinção da punibilidade (art. 28-A, § 13, do CPP), de modo que como norma de natureza jurídica mista e mais benéfica ao réu, deve retroagir em seu benefício em processos não transitados em julgado (art. 5º, XL, da CF).” (AgRg no HC 575.395/RN, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 08/09/2020, DJe 14/09/2020). Em outros processos, todavia, a Turma entendeu que a matéria não poderia ser veiculada a qualquer momento, se representasse inovação recursal – ver AgRg no AREsp 1683890/SC, Rel. Min. Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 25/08/2020, DJe 04/09/2020.

A Quinta Turma, como dito, entende que é descabida a aplicação retroativa do instituto mais benéfico previsto no art. 28-A do CP (acordo de não persecução penal) inserido pela Lei n. 13.964/2019 quando a persecução penal já ocorreu, estando o feito sentenciado, inclusive com condenação confirmada por acórdão – AgRg no REsp 1860770/SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 01/09/2020, DJe 09/09/2020). 

O órgão adota a posição segundo a qual o ANPP é cabível desde que não recebida a denúncia – vide AgRg no REsp 1826584/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 22/09/2020, DJe 29/09/2020). Para a Quinta Turma, a Lei n. 13.964/19 é dotada de aplicação imediata, embora sem qualquer tom de retroatividade – RHC 130.175/SP, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 25/08/2020, DJe 03/09/2020 e o ANPP deve ser proposto,  caso o Ministério Público assim o entenda, na fase de investigação criminal ou até o recebimento da denúncia – EDcl no AgRg nos EDcl no AREsp1.681.153/SP, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em  08/09/2020, DJe 14/09/2020.

Renato Brasileiro de Lima (Pacote Anticrime. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 225) comunga desse último entendimento ao revelar que “o acordo poderá ser celebrado inclusive para fatos ocorridos em momento anterior, desde que a peça acusatória ainda não tenha sido recebida pelo magistrado.”

O acordo de não persecução penal (ANPP) é norma penal de natureza híbrida ou mista, por possuir conteúdo penal e processual penal. Nas leis com essa característica, o conteúdo material deve se sobressair e, por consequência, em respeito à principiologia que permeia o Direito Penal, entendo que deve retroagir em benefício do indivíduo, em cumprimento ao art. 5º, XL, da Constituição da República. Assim, como registrado por Marcos Paulo Dutra (Comentários ao Pacote Anticrime. São Paulo: Método, 2020, p. 193) “os ANPPs alcançam ações penais em curso, independentemente da fase na qual estiverem.” Também Guilherme Madeira Dezem e Luciano Anderson de Souza (Comentários ao Pacote Anticrime. São Paulo: RT, p, 112) entendem que “somente não seria cabível para os processos com trânsito em julgado, dada a incompatibilidade ontológica das situações de condenado com trânsito em julgado e de proposta de acordo de não persecução penal.” 

A opção do legislador em criar esse acordo deve levar, pois, a meu sentir na aplicação do instituto a qualquer momento processual antes do trânsito em julgado, tal qual asseverado pela Sexta Turma do STJ. Penso que o ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando do surgimento da Lei n. 13.964/2019, seu conteúdo é de norma híbrida ou mista e a retroatividade do art. 28-A do CPP alcança processos não transitados em julgado.

A solução desse impasse, todavia, caberá ao Plenário do Supremo Tribunal Federal no HC 185.913/DF


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