| 21 setembro, 2020 - 12:26

Em decisão inédita no Rio, Justiça autoriza que pessoa não-binária tenha documento com a inscrição ‘sexo não especificado’

 

O simples preenchimento de um formulário costumava se transformar em um grande transtorno para Aoi Berriel, de 24 anos. O problema era sempre o mesmo: ter que escolher entre os gêneros feminino e masculino para finalizar o cadastro, o que se recusava a fazer. Há cerca de seis anos, após mergulhar em estudos sobre questões

O simples preenchimento de um formulário costumava se transformar em um grande transtorno para Aoi Berriel, de 24 anos. O problema era sempre o mesmo: ter que escolher entre os gêneros feminino e masculino para finalizar o cadastro, o que se recusava a fazer. Há cerca de seis anos, após mergulhar em estudos sobre questões de gênero e sexualidade, Aoi passou a se reconhecer pessoa não-binária, que não se identifica como sendo do sexo feminino e nem masculino ou identifica-se com ambos. No fim do mês passado, ela conseguiu uma decisão inédita: a Justiça do Rio a autorizou a ter em sua certidão de nascimento “sexo não especificado”. O pedido foi feito pela Defensoria Pública do estado.

Foto: Breno carvalho / O Globo

Aoi procurou a defensoria em 2015, inicialmente, para fazer sua mudança de nome. Informada sobre a possibilidade de pleitear ainda a alteração no gênero, não teve dúvidas de que também desejava fazer o pedido.

— Geralmente, quando estou debatendo essa questão (de gênero) com alguém, a primeira coisa que a pessoa faz é dizer que devo me identificar da forma que consta em meus documentos. Só que tudo ligado ao gênero masculino me remete a algo opressivo. Fui pressionada a vida inteira a ter uma masculinidade com a qual não me identificava — explica Aoi, que optou por ser chamada por pronomes femininos.

A defensora pública Letícia Furtado, coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos (Nudversis), afirma não ter conhecimento de uma decisão como essa no país, que servirá como precedente para que outras pessoas recorram ao Judiciário para ter o mesmo direito reconhecido:

— Fomos educados a entender que devemos ser homens ou mulheres por conta dos fatores reprodutivos. Todo nosso sistema é binário e nosso sistema jurídico também foi baseado nisso. As mudanças que vêm ocorrendo são porque a sociedade tem mostrado essa gama de comportamentos diferentes, de que não tem que ser uma coisa ou outra, um gênero ou outro. Essas pessoas precisam ter seus direitos reconhecidos sem qualquer limitação, em respeito aos princípios da igualdade e dignidade da pessoa humana.

O advogado Fábio Pereira, que atua junto ao grupo Mães pela Diversidade, reforça o ineditismo da decisão e a importância para o reconhecimento de direitos de pessoas não-binárias.

— Não tenho conhecimento de nenhuma decisão judicial como essa. Mas ela está totalmente de acordo com a forma com que o meio jurídico vem respondendo a essas questões de gênero. Na minha opinião, era uma decisão totalmente esperada — afirma ele, que também é professor.

“As mudanças que vêm ocorrendo são porque a sociedade tem mostrado essa gama de comportamentos diferentes, de que não tem que ser uma coisa ou outra, um gênero ou outro. Essas pessoas precisam ter seus direitos reconhecidos sem qualquer limitação”

Na sentença do processo, o juiz Antonio da Rocha Lourenço Neto, da 1ª Vara de Família da Ilha do Governador, afirma que “o direito não pode permitir que a dignidade da pessoa humana do agênero (pessoa sem gênero) seja violada sempre que o mesmo ostentar documentos que não condizem com sua realidade física e psíquica”. O Ministério Público estadual deu parecer favorável ao pedido de Aoi, o que significa que não haverá recurso.

Filho de um militar da Aeronáutica, Aoi carrega em suas lembranças que desde a infância já não se identificava com os gêneros masculino e feminino. Mas a rigidez das regras impostas em sua casa não lhe deram espaço para refletir sobre seu gênero e preferências sexuais. No fim da adolescência, sentiu-se à vontade para fazer as reflexões que sempre lhe rondaram. Encontrou resistência principalmente do pai, de quem acabou se distanciando:

— Passei a usar batom, roupas femininas, e às vezes perucas. Quis experimentar. Meu pai dizia que eu não iria sair de casa daquela forma. Foi um momento de distanciamento.

Nessa fase, Aoi optou por cursar Ciências Sociais para se aprofundar nas questões de gênero. Foi só então que se identificou como não-binário.

— Essa investigação sobre mim mesma doeu, mas me deixou muito mais confortável. Foi um momento em que me permiti explorar meu gênero e por isso tenho muita certeza das minhas escolhas. Isso tudo melhorou muito minhas relações interpessoais, pois passei a ser quem eu queria ser e não aquilo que esperavam de mim — relata, acrescentando que o processo também foi de aceitação para o pai, com o qual tem hoje um excelente relacionamento.

O Globo


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