Por Rodrigo Leite | Telegram: https://t.me/pilulasjuridicasSTFSTJ | Instagram: @rodrigocrleite
A Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime) promoveu alterações em diversos diplomas legislativos. Entre as modificações realizadas, está a prevista no art. 171 do Código Penal, dispositivo que prevê o delito de estelionato.
O crime de estelionato era promovido por meio de ação pública incondicionada, salvo as exceções previstas no art. 182 do Código Penal. Com o advento da nova lei, a ação penal para o crime de estelionato passou a ser pública condicionada à representação como regra. Apenas de forma excepcional é que a ação penal para esse crime será pública incondicionada e nas hipóteses do § 5º do art. 171, se a vítima for: a Administração Pública, direta ou indireta; criança ou adolescente; pessoa com deficiência mental ou maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.
A disposição possui conteúdo misto ou híbrido – penal e processual – pois a opção legislativa pela ação penal pública condicionada à representação poderá ensejar de extinção de punibilidade se não oferecida no prazo de seis meses, na forma dos arts. 103 e 107, IV, do CP e 38 do CPP.
A Lei n. 13.964/2019 não trouxe disposições de direito intertemporal e, em virtude disso, uma polêmica já chegou ao Superior Tribunal de Justiça. O § 5º do art. 171 do CP deve retroagir? E se deve, existe algum marco temporal no qual essa retroação deve ocorrer?
No STJ, as turmas que lidam com a matéria penal e processual penal deram soluções diferentes para a hipótese.
Ao julgar o HC 573.093/SC, em 09/06/2020, a Quinta Turma entendeu que a “a retroatividade da representação no crime de estelionato não alcança aqueles processos cuja denúncia foi oferecida, ou seja, ações penais anteriores à inovação legislativa que se encontram em trâmite no primeiro grau, nos Tribunais, no STJ e STF” (ver página 09 do voto do relator)
Entendeu-se que “além do silêncio do legislador sobre a aplicação do novo entendimento aos
processos em curso, tem-se que seus efeitos não podem atingir o ato jurídico perfeito e acabado (oferecimento da denúncia), de modo que a retroatividade da representação no crime de estelionato deve se restringir à fase policial, não alcançando o processo. Do contrário, estar-se-ia conferindo efeito distinto ao estabelecido na nova regra, transformando-se a representação em condição de prosseguibilidade e não procedibilidade.”
Assim, para a Quinta Turma do STJ, a retroatividade do art. 171, § 5º, do Código Penal, não atinge os processos em que a denúncia já foi oferecida quando da entrada em vigor da Lei n. 13.964/2019 (em vigor a partir de 23 de janeiro de 2020). A retroatividade da representação ficaria restrita, pois, à fase policial.
A Sexta Turma do STJ, por sua vez, ao analisar o HC 583.837/SC, julgado em 04 de agosto de 2020, chegou à conclusão um pouco diferente. Considerou que “a retroação do § 5º do art. 171 do Código Penal alcança todos os processos em curso, ainda sem trânsito em julgado, sendo que essa não gera a extinção da punibilidade automática dos processos em curso, nos quais a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal.”
A Sexta Turma aplicou o art. 171, § 5º, do Código Penal, sem realizar o “corte temporal” efetuado pela Quinta Turma. Para a Sexta Turma, a retroatividade independe se o processo já tem denúncia oferecida ou não, como entendeu a Quinta Turma.
A 6ª Turma adotou, a meu ver, uma providência muito importante. Como dito acima, a Lei n. 13.964/2019 não trouxe regras de direito intertemporal e, por isso, este colegiado resolveu o impasse aplicando analogicamente o art. 91 da Lei n. 9.099/1995, ou seja, conferiu prazo de 30 (trinta) dias para a vítima manifestar interesse na continuação da persecução penal, sob pena de decadência.
Assim, em síntese: 1) a Quinta Turma do STJ entende que a retroatividade do novo art. 171, § 5º, do Código Penal, não alcança aqueles processos cuja denúncia foi oferecida, de modo que a retroatividade da representação no crime de estelionato deve se restringir à fase policial, não alcançando o processo e 2) Para a Sexta Turma do STJ, a retroação do § 5º do art. 171 do Código Penal alcança todos os processos em curso, independentemente da fase processual, não gerando a extinção da punibilidade automática dos processos em curso, nos quais a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal.
Entendo correta a posição da Sexta Turma do STJ, pois a norma repercute no direito material e, nesse campo, vigora a regra segundo a qual a lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (art. 5º, XL, CF/88 e art. 2º, parágrafo único, do CP). Deve prevalecer a retroatividade benéfica, independente da fase em que se encontre a persecução penal. Todavia, apenas ressalvo que o prazo a ser aplicado, a meu ver, deveria ser o de 6 (seis) meses a contar da intimação da vítima (e não 30 dias a contar da intimação da vítima), pois o Código de Processo Penal e o Código Penal possuem prazo para oferecimento da representação – ver arts. 38 do CPP e 103 do CP, de modo que a aplicação do prazo de 30 (trinta) dias da Lei dos Juizados Especiais não nos parece a melhor solução, uma vez que havendo prazo no CP ou no CPP, não se deveria aplicar a Lei n. 9.099/1995.