| 21 maio, 2020 - 18:08

Empresas demitem e dizem a trabalhadores que Estado é quem deve indenizá-los, mas tese não deve prosperar

 

“Tem um artigo na CLT que diz que todo empresário ou comerciante que for obrigado a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas quem paga é o governador e o prefeito. Tá ok?”, disse o presidente da República Jair Bolsonaro no fim de março, em frente ao Palácio do

“Tem um artigo na CLT que diz que todo empresário ou comerciante que for obrigado a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas quem paga é o governador e o prefeito. Tá ok?”, disse o presidente da República Jair Bolsonaro no fim de março, em frente ao Palácio do Alvorada.

Reprodução

Depois da fala do presidente da República, algumas empresas passaram a adotar a estratégia. Uma delas foi a rede de churrascarias Fogo de Chão, que demitiu 436 pessoas em todo o país, pagou as verbas rescisórias devidas, como 13º e férias proporcionais, mas deixou de pagar o aviso prévio indenizado, que, na visão da empresa, deve ser pago pelos governos locais que tomaram medidas restringindo o funcionamento de serviços e comércios, como restaurantes. A empresa informou que se baseou no artigo 486 da CLT. 

Mas uma empresa que demite seus funcionários em razão da suspensão de atividades em razão de decretos locais para conter a Covid-19 pode mesmo alegar que é responsabilidade do governo pagar os encargos da rescisão? Para especialistas, a questão não é tão simples assim, e essa alegação dificilmente será chancelada pela Justiça do Trabalho. 

O artigo 486 da CLT prevê que, no caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ficará ao cargo do ente responsável o pagamento de uma indenização. O dispositivo aplica uma teoria do Direito do Trabalho conhecida como “fato do príncipe”, que é quando uma empresa é afetada por medidas tomadas por uma autoridade, de forma imprevisível e sobre a qual não pode fazer nada. 

Na prática, é a Justiça quem decide quando este artigo pode ser aplicado. E tanto advogados de trabalhadores quanto de empresas entendem que dificilmente a Justiça do Trabalho o aplicará em relação a medidas tomadas para conter a Covid-19. Isso porque os decretos locais não se voltam a uma empresa ou atividade específica, não pretendem interromper em definitivo os serviços, e foram editados em prol da saúde pública e da sociedade como um todo. 

Geralmente, a Justiça leva em consideração os motivos por trás dos atos de prefeitos, governadores e presidentes para decidir a aplicação da teoria do fato do príncipe. Além disso, a Justiça deve considerar que há medidas tomadas pelo governo federal que dão opções às empresas, como redução salarial e linhas de crédito para pagamentos de salários.

Para Cássio Casagrande, professor de Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF) e procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (MPT-RJ), o fato do príncipe não deve ser aplicado nesse contexto de pandemia. 

“Não houve a proibição de uma atividade específica, na verdade é uma decisão cujo objetivo não é paralisar uma atividade econômica, mas evitar aglomerações e atividades que potencialmente podem reunir um grande número de pessoas”, diz. “Entendo que não é aplicável para essa situação, inclusive porque o próprio governo encaminhou soluçõest para não haver a demissão, como a suspensão temporária de contratos de trabalho, e a redução de salário e jornada. Na hipótese do artigo 486, a única solução é o encerramento da atividade”. 

Na visão de Ricardo Calcini, professor de Direito do Trabalho em cursos de pós-graduação e especialista em relações sindicais, o fato de o próprio governo ter considerado a Covid-19 um fato de força maior nas relações trabalhistas por meio da Medida Provisória 927/2020 acabou gerando esse entendimento pela aplicação do fato do príncipe. O fato do príncipe, explica Calcini, é um tipo de força maior, mas para sua aplicação é necessário observar alguns requisitos, como a intenção governamental de efetivamente interromper ou extinguir uma atividade.

“Todos nós estamos vendo decretos municipais e estaduais, que inviabilizam momentaneamente o desenvolvimento de algumas atividades. Só que essa paralisação momentânea não quer dizer que a atividade deixou de existir. Em nenhum momento qualquer governador, qualquer prefeito disse que a partir de agora não existe mais certa atividade”, explica. “A impossibilidade momentânea de dar prosseguimento a sua atividade está sendo interpretada por alguns empresários no sentido de que essa impossibilidade fosse uma proibição da atividade existir. Por isso, entendem que seriam responsabilidade do Estado”. 

Justiça é quem decide

Em casos como o da Fogo de Chão, os trabalhadores demitidos podem acionar a Justiça contra a empresa, e não contra o poder público. O empregador, então, poderá acionar o ente público respectivo, que deverá se manifestar no processo. Caberá a um juiz decidir se o Estado deverá ou não pagar indenização a empresa referente às demissões. 

Um ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ouvido reservadamente, concorda que o entendimento de que o Estado não poderia arcar com verbas rescisórias porque o objetivo das medidas de governadores e prefeitos é proteger a sociedade, e não acabar com atividades empresariais. Além disso, a empresa deveria provar na Justiça que não havia outras medidas possíveis além da demissão. 

A eventual aplicação do artigo 486 da CLT ainda gera dúvidas quanto aos valores que estariam compreendidos pelo seu texto. Isso porque o artigo foi inserido na lei antes da criação do FGTS, quando havia uma indenização paga aos trabalhadores em caso de demissão. Hoje, a indenização que seria devida pelo poder público às empresas é geralmente lida como a multa de 40% sobre o fundo de garantia. Há quem interprete, porém, que essa indenização também se refere ao aviso prévio – como foi o caso da Fogo de Chão. Há consenso que as outras verbas rescisórias, como salário residual, férias e 13º proporcionais e horas extras são sempre de competência do empregador. 

De qualquer forma, a interpretação e aplicação do artigo 486 deve passar pelo crivo judicial, de maneira que não há segurança jurídica para quem resolva adotar o artigo em relação às medidas contra a pandemia da Covid-19. Advogados opinam que caso uma empresa acredite que o poder público deva ser responsabilizado por pagar parte das verbas rescisórias de eventuais demissões, é melhor que pague o devido aos funcionários e só depois acione o Judiciário para exigir uma reparação do Estado. Isso porque se as verbas rescisórias não forem quitadas em até dez dias após a demissão, a empresa pode ser condenada a pagar um salário adicional ao trabalhador. 

JOTA


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