Ainda que tenha feito uma série de reformas no Código de Processo Penal e no Código Penal, a Lei 13.964/19, conhecida como lei “anticrime”, não modificou o artigo 385 do CPP. O trecho, que é alvo de críticas por parte de advogados e juristas, permite que o réu seja condenado mesmo que o Ministério Público se manifeste a favor da absolvição.
Essa possibilidade de condenação vem sendo justificada com base no princípio da indisponibilidade da ação penal, prevista pelo artigo 42 do CPP. Segundo esse dispositivo, o “Ministério Público não pode desistir da ação penal”. Assim, se após o oferecimento da denúncia o MP se manifestar pela absolvição, a ação já está indisponível, o que permite ao juiz condenar o réu, mesmo com a mudança de entendimento por parte do MP.
Em 2016, durante o julgamento do Recurso Especial 1.612.551, o MPF se posicionou no Superior Tribunal de Justiça contra a eficácia do artigo. Segundo o parecer, o dispositivo não foi recepcionado pela Constituição de 1988.
Na ementa da Ação Penal 960, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal registrou que o juiz não pode condenar quando o MP pedir a absolvição. “Mas os votos não trabalharam essa questão”, afirma o criminalista Alberto Toron. De todo modo, como não havia efeitos erga omnes, o artigo 385 continuou a ser aplicado.
De acordo com especialistas ouvidos pela ConJur, o dispositivo não reflete o modelo de acusação implementado pela Constituição de 1988, representando um resquício do arcaico sistema inquisitório.
Para a advogada criminalista Joyce Roysen, “ao manter o artigo 385 do CPP em sua redação atual, o legislador perdeu uma oportunidade de realizar uma nova alteração legislativa que caminhasse em direção a um processo efetivamente acusatório e, portanto, em conformidade com a Constituição de 1988”. Assim, tendo em vista que as inovações trazidas no pacote ‘anticrime’ tendem a limitar decisões de ofício por parte dos magistrados, “caberá aos tribunais, uma vez mais, analisar se o artigo permaneceria compatível com o sistema processual adotado no país”, diz.
Para Raquel Lima Scalcon, advogada e professora de Direito Penal na Fundação Getúlio Vargas, “o artigo 385 do CPP há muito tempo tem sua constitucionalidade questionada pela doutrina processual penal”. “Ele é um resquício inquisitório de um modelo que, após a Constituição de 1988, rumou para o sistema acusatório”, afirma.
Scalcon explica que, no modelo vigente, as funções e competências devem ser definidas de modo estrito, sendo uma “patologia” admitir que o juiz possa condenar quando o órgão acusador, que exerce a pretensão punitiva, pede a absolvição. “Perdemos uma importante oportunidade para revogar expressamente o artigo 385 do CPP, já que outras mudanças similares foram introduzidas”, diz.
O promotor de Justiça de Araguari (MG) André Luís Alves de Melo tem opinião similar. De acordo com ele, o artigo 385, “apesar de inconstitucional, ainda é validado pela jurisprudência legalista”. “Melhor que fosse revogado ou alterado, assim como os artigos 24 e 42 do CPP, para que o processo penal focasse nos casos mais relevantes e efetivamente em um processo conforme a Constituição”, afirma.
Para Luiza Oliver, sócia do escritório Toron, Torihara e Cunha Advogados, havendo pedido de absolvição por parte do MP, desaparece o interesse de agir, que é condição essencial da ação. “Assim, o artigo 385 do CPP possibilita que os poderes acusatórios e decisórios sejam unidos na pessoa do juiz, o que é completamente incompatível com o sistema acusatório e com o princípio da imparcialidade do magistrado”, diz.
Para Toron, no entanto, “é preciso deixar bem claro que é falsa a ideia de que a Constituição adotou um sistema puramente acusatório”. Ele lembra que a reforma de 2008 no CPP alterou o artigo 156, incluindo inciso II, segundo o qual o juiz, de ofício, na fase investigatória, pode ordenar diligências que entenda pertinentes para a apuração do caso.
Para a advogada Flávia Rahal, especialista em Direito Penal, “a atual redação do artigo 385 representa um apego do legislador ao modelo inquisitivo, no qual o juiz se afasta da necessária imparcialidade que deve conduzir suas ações para avançar no exercício de uma pretensão punitiva, cuja titularidade é exclusiva do MP”.
Ela afirma que os países democráticos que respeitam as liberdades e direitos individuais “já adotam o sistema puramente acusatório, no qual cabe ao juiz apenas julgar dentro dos limites da pretensão acusatória”.
Revogação tácita
Segundo a advogada criminalista Paula Sion, sócia do Cavalcanti, Sion e Salles Advogados, a lei “anticrime” alterou o artigo 3º do CPP para estabelecer que o processo penal pátrio tem estrutura acusatória.
“Nesse sentido, o artigo 385 do CPP está em dissonância com o novo modelo e deveria, sim, ter sido objeto de revogação na promulgação da nova lei. Se as partes estão de acordo que não deve haver condenação, não pode o juiz condenar. A meu ver, não só este como qualquer outro dispositivo que atente contra o sistema acusatório deve ser considerado tacitamente revogado com a entrada em vigor do artigo 3º, A, do CPP”.
Princípio de congruência
Para a advogada criminalista Maitê Cazeto Lopes, o artigo 385 do CPP, em especial no que se refere ao reconhecimento das agravantes não alegadas na denúncia, afronta o princípio da congruência, sendo inconstitucional.
“Até mesmo o decreto condenatório diante do pedido de absolvição não condiz com as premissas constitucionais da Carta de 1988, que elegeu o Ministério Público o titular da ação penal pública (artigo 129, I, CF). Sem requerimentos de condenação pelo legítimo interessado não poderia o magistrado, a despeito de convicção diversa, substituir o acusador e proferir a sentença condenatória”, diz ela.
Conjur