| 9 dezembro, 2019 - 17:00

Juiz manda advogado para presídio de segurança máxima por crime de calúnia

 

Ele também afirma que o magistrado “agiu como um fora da lei” e “passou a utilizar mecanismos processuais como forma de advogar em favor da outra parte”.

Devastado psicologicamente, o advogado Rodrigo Filgueira Queiroz chegou a arrancar um cabo de TV pendurado no canto da cela em que foi colocado na Penitenciária de Presidente Venceslau, no extremo oeste do estado de São Paulo. “Naquele estado de paranoia cheguei a pensar que tinham deixado aquele fio lá para eu me enforcar. Puxei aquele cabo até ele cair no chão. Depois um dos presos viu aquilo e me falou para esconder pois era destruição de patrimônio e podia me complicar ainda mais”, lembra em entrevista à ConJur.

Reprodução

O caminho que levou o advogado a um presídio de segurança máxima e ao “estado de coisas inconstitucional” que é o sistema prisional brasileiro passa por uma ação de juizado especial civil, embargos de declaração e uma redação agressiva sobre a atuação de um juiz em um mandado de segurança que acabou gerando uma ação penal.

Insatisfeito com a sentença do juiz Maurício Ferreira Fontes, do Juizado Especial Cível e Criminal de Fernandópolis (555 km de São Paulo), que não reconheceu os embargos de declaração no processo em que ele atuava, Queiroz decidiu impetrar um mandado de segurança contra o ato do magistrado. “Eu admito que fui muito duro. Que cheguei ao extremo e usei palavras fortes até como estratégia para chamar a atenção do relator”, diz.

No documento, o advogado alega, entre outras coisas, que o juiz “inventou a sanção do trânsito em julgado para embargos de declaração, defecando no artigo 50 da Lei 9.099/95 e no princípio da legalidade”. Ele também afirma que o magistrado “agiu como um fora da lei” e “passou a utilizar mecanismos processuais como forma de advogar em favor da outra parte”.

“O dia do julgamento do mandado de segurança era uma sexta-feira e o relator não conseguiu comparecer.  E mesmo sem nada ser julgado o juiz questionado na ação me representou no Ministério Público e na OAB na segunda-feira”, lembra.  A representação na Ordem foi arquivada, mas a do MP gerou uma denúncia pelo crime de calúnia.

 O colegiado havia decidido que o juiz questionado no mandado de segurança não deveria ter acesso à petição, mas um escrivão imprimiu os documentos e grifou partes sensíveis da peça processual antes de mostrar ao magistrado. Segundo Queiroz, os trechos grifados foram usados na representação ao MP e a OAB. 

Queiroz assumiu a própria defesa no início do processo criminal, mas depois requisitou um advogado dativo ou que a Defensoria Pública o representasse. Ainda assim, ele seguiu parte atuante da própria defesa — atitude que o levou a ser acusado posteriormente de tumultuar o processo.

Processo conturbado
Queiroz afirma que sempre buscou ajuda com os advogados dativos e que não queria provocar confusão. “Eu só queria um interlocutor que me auxiliasse”, diz.  Da apresentação da denúncia no dia 3 de março deste ano até agosto o processo já contava com 1.249 folhas.

Em novembro, o juiz Vinicius Castrequini Bufulin apresentou diversos atos que supostamente configurariam a intenção do advogado de impedir o trâmite do processo. Segundo magistrado, o advogado continuou a apresentar “petições tumultuárias, mesmo não mais atuando em causa própria porque acolhido seu pedido de representação por advogado dativo”.

O juiz também alega que “cerca de 1 hora após a apresentação das alegações finais pelo advogado dativo (f. 1377/1396), o réu apresentou petição destituindo aquele da representação e assumindo a causa novamente”. Queiroz assumiu novamente sua defesa e teve concedido cinco dias de prazo para apresentar as alegações finais.

Queiroz decidiu não apresentar as alegações finais, teve uma nova defensora dativa nomeada e, conforme o juiz, “inusitadamente, a procurou para impedir que as alegações fossem apresentadas”.

Conforme o advogado, a sua insistência em não apresentar as alegações finais era justificada porque ele queria a correção de um erro material. “Toda denúncia do MP começa com o escrito ‘consta do incluso inquérito policial’. E no meu caso não tem inquérito policial. Eu sei que o MP não precisa de inquérito para denunciar ninguém, mas o MP não pode mentir e dizer que existe um inquérito onde não tem. Pedi para corrigir isso como um erro material e fui esculachado. Eu fui denunciado como ‘Rogerio’ e isso foi corrigido. A questão do inquérito policial não”, afirma.

A postura do advogado foi vista como desrespeito. “Esse Juízo já julgou diversos membros confessos do PCC e nenhum demonstrou ter tanto desprezo pelo Judiciário quanto o réu”, ponderou o juiz. O magistrado escreveu que “nem mesmo a suspensão cautelar da habilitação profissional não resolve o problema, porque o réu passou a instar os advogados nomeados a não apresentarem alegações finais, dando ensejo a renúncias e destituição”.

Ao decretar a prisão preventiva, o juiz alega que o único modo de evitar que o réu constrangesse o novo advogado dativo que seria nomeado era o retirando do convívio social. “Além de permitir a atuação de defensor dativo, sem constrangimentos, a prisão preventiva do réu lhe trará o mínimo de vontade de ser julgado”, justificou.

Sala de Estado Maior
Na manhã de 11 de novembro, uma viatura a paisana com policiais civis de Fernandópolis foi até a casa de Queiroz, em Itajá, no estado de Goiás, para prendê-lo sem carta precatória. “Tive aquele baque inicial e assim que li o mandado de prisão vi o número do processo e lembrei do juiz”, diz. Os policiais esperaram que ele deixasse seu filho na casa do pai dele antes de ser encaminhado para delegacia da cidade.

O mandado de prisão determinava que o advogado teria que ser mantido em uma sala de Estado Maior. Uma prerrogativa dos advogados que determina que esse profissional não seja recolhido, antes do trânsito em julgado, a não ser em instalações e comodidades condignas, e, na sua falta, em prisão domiciliar.

O juiz de Itajá, no entanto, entendeu que o advogado deveria ser detido na casa de detenção local em uma cela individual. Queiroz decidiu que iria resistir à prisão e exigir uma sala de Estado Maior. “Só queria que a sentença fosse cumprida. Uma cela nunca vai ser uma sala de Estado Maior”, argumenta.

Diante do impasse, os policiais locais adaptaram uma sala para acomodar o advogado. Ele ficou detido dois dias na cidade de Itajá e dois dias na cidade de Guarani D’Oeste, em São Paulo.

Nesses locais, Queiroz tinha acesso à internet e entrou em contato com o advogado dativo que fora destacado para cuidar do seu caso. Ele também tinha acesso a todos os seus pertences, como celular e notebook.

Ao tratar com o novo defensor, o advogado pediu para que ele entrasse com a revogação da prisão. “No pedido, o defensor disse que mantinha contato comigo desde que eu havia sido preso. O recurso foi indeferido pelo juiz, que alegou que o documento seria mais uma prova de que eu estava constrangendo o defensor e o impedindo de trabalhar”, conta.

Em Guarani D’Oeste, novamente teve que afirmar que iria resistir se fosse levado para uma cela comum e criar um novo impasse para ser acomodado em uma sala. Com acesso à internet e ainda de posse dos seus equipamentos, ele impetrou pedidos de Habeas Corpus em seu próprio benefício. “Estávamos às vésperas do feriado de 15 de novembro, e eu tinha medo de que a situação só se resolvesse após o feriado”, explica.

Queiroz ainda foi transferido para o CDP de Riolândia. “Todo mundo sabe que o presídio de Riolândia não tem sala de Estado Maior. Aliás, lá não tem sala nenhuma. Quando reclamei, o delegado veio para cima de mim. Eu me limitei apenas a dar passos para trás, mas deixei claro que iria resistir se fosse transferido para lá”, diz.

Os grandes muros da penitenciária e o som cortante do portão de ferro se abrindo deixaram o advogado impressionado. “Aí eu entendi que juiz estava fazendo isso comigo para me abalar emocionalmente. Me explicaram que assim que eu entrei naqueles portões eu seria um preso comum e não um advogado”, disse.

Queiroz voltou a dizer que não entraria em uma cela e que teria direito a uma sala de Estado Maior. “Me disseram que a penitenciária tinha canil e os cães eram bem treinados. Que iria entrar na cela de qualquer maneira”, afirmou. Ele também se recusou a vestir a roupa de presidiário, mas aceitou ser fichado.  

O colocaram em uma cela transitória ao lado da sala de trabalho dos agentes penitenciários. “Passaram umas duas horas até me dizerem que eu seria transferido para Presidente Venceslau. Cheguei na porta do CDP e vi que iriam me transportar em um camburão. Me recusei a entrar no camburão e fui colocado lá dentro contra a minha vontade”, explica.

 Queiroz foi diagnosticado com transtorno de ansiedade. Ao entrar no camburão explica que mal conseguia respirar e tirou toda a roupa. “Ali não entra ar. Só quando o carro alcança certa velocidade é que entra um pouco de ar. Depois durante o trajeto o veículo parava em certos momentos e percebi que estava em uma estrada de terra”, diz.

Durante o trajeto, ele decidiu que não iria mais resistir. Contou que teve que tirar suas roupas, agachar nu duas vezes e vestir as roupas de presidiário. “Me colocaram em uma cela feia, suja e cheia de mosquitos. Um lugar terrível com um colchão jogado no canto, uma pia e uma privada. Depois me disseram que a cela era muito boa porque ela tinha descarga e que eu não iria encontrar algo assim em lugar nenhum do Brasil”, afirma. “Me disseram que eu estava em regime de observação e que isso iria durar ao menos dez dias”, completa.

Rotinas e condenação
Queiroz recorda que sua primeira noite em Presidente Venceslau foi aterradora. “Eu ouvia gritos que pareciam estar cada vez mais próximos da minha cela. Achei que era uma rebelião e me escondi. Depois descobri que aquele barulho era provocado pelos “salveiros”. Presos que ficam se comunicando uns com os outros para saber quem estava na enfermaria. Se estavam sendo bem tratados.”

No dia seguinte outros presos entraram em contato com Queiroz. Alguns deles advogados detidos no bojo da chamada operação “ethos” — que investiga o envolvimento de advogados com a organização criminosa Primeiro Comando da Capital. “Quando eu dizia que estava preso por crime de calúnia, ninguém acreditava”, diz.

Um dos presos que ele conheceu disse que seu irmão estava no lado de fora da prisão e queria que ele assinasse uma procuração. Queiroz foi requisitado por um advogado local contratado por seu irmão para que ele passasse uma procuração em nome da OAB de Goiás e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas.

“Ele me disse que o meu HC já havia sido indeferido e que o documento permitiria que eu desistisse desse recurso e fosse impetrado um novo HC em nome da Abracrim e da OAB de Goiás”, lembra.

O novo HC foi assinado pelo advogado Mário de Oliveira Filho, presidente da Comissão Nacional de Direitos e Prerrogativas da Abracrim, e foi indeferido pelo desembargador Antonio Carlos Machado de Andrade.

Oliveira Filho também gravou um vídeo contando o caso de Queiroz e a história viralizou rapidamente. O advogado dativo apresentou as alegações finais, mas o juiz Vinicius Castrequini Bufulin não revogou a prisão preventiva.

No dia 22 de novembro deste ano, Queiroz foi condenado a 3 anos e 1 mês de detenção em regime semiaberto. Na sentença, o magistrado pondera que a calúnia se fez evidente ao se atribuir ao juiz de direito “a tomada de lado, em especial com a ênfase feita no contexto da peça processual”. E apesar da sentença se referir a regime semiaberto, o juiz determinou que Queiroz fosse solto após o esgotamento da instância.

Apenas no dia 26 de novembro, quando a apelação foi protocolada, que o juiz determinou a soltura de Queiroz.

Habeas Corpus e CNJ
No dia 5 deste mês, o ministro Rogerio Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça, decidiu atender pedido de HC impetrado pelos advogados Mário de Oliveira Filho e Mauro Otávio Nacif, da Abracrim, em benefício de Queiroz.

Ao analisar a questão, o ministro pondera sobre a aplicação da Súmula 691 do STF que determina que o STJ não conceda HC impetrado contra decisão denegatória de liminar, por desembargador, antes do prévio pronunciamento do órgão colegiado de 2º grau.

O magistrado, no entanto, recorda que em caso de “evidenciada, sem necessidade de exame mais vertical, a apontada violação ao direito de liberdade do paciente”, a jurisprudência, tanto do STJ quanto do STF, admite o excepcional afastamento do rigor da Súmula 691.

Queiroz pretende acionar o Conselho Nacional de Justiça para que a conduta do juiz que decretou sua prisão seja apurada. “As palavras mais duras que escrevi na ação civil estavam dentro do contexto de defesa do meu cliente. Se ultrapassei limites foi para chamar atenção para os direitos do meu cliente que estavam sendo violados. Eu não me excedi a ponto de merecer uma reprimenda de prisão. Eu fui preso por ter sido grosseiro em petição. Se a Lei de Abuso de Autoridade tivesse em vigor, talvez isso não tivesse acontecido O mínimo que posso fazer é levar ao conhecimento do CNJ”, lamenta.

Conjur


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