| 2 agosto, 2019 - 15:49

Sentenças sobre trabalho escravo na Segunda Guerra provocam batalha comercial entre Japão e Coreia do Sul

 

Tóquio restringe comércio em retaliação a decisões judiciais sul-coreanas que obrigavam suas empresas a pagar indenização por abusos durante ocupação da Península Coreana

Manifestantes na Coreia do Sul
Foto: Jung Yeon-Je / AFP

Quando, na madrugada do último sábado, um homem de 74 anos ateou fogo ao próprio corpo na frente da embaixada japonesa em Seul, não houve dúvida entre os sul-coreanos sobre suas motivações. Tratava-se de mais uma das demonstrações de fúria contra as restrições nipônicas ao fornecimento de materiais químicos essenciais para a indústria de alta tecnologia da Coreia do Sul , base para a manufatura das principais exportações do país, como semicondutores, telas de LED, chips de memória e aparelhos celulares.

A sanção desses produtos, cujo abastecimento é virtual monopólio de Tóquio , foi uma reação direta a decisões tomadas no final do ano passado pela Suprema Corte sul-coreana, ordenando que as empresas japonesas Mitsubishi e Nippon Steel & Sumitomo Metal pagassem indenização pelo uso de mão de obra escrava durante a ocupação japonesa da Península Coreana na Segunda Guerra Mundial .

As decisões e a reação japonesa reacenderam um ciclo de hostilidades entre os dois países, que chegou ao auge nesta sexta-feira, quando o governo de Seul, em retaliação a igual medida anunciada por Tóquio, informou que também vai retirar o Japão de sua “lista branca” de parceiros comerciais mais favorecidos, status que permitia aos dois países um processamentos rápido das exportações e importações.

— Não seremos derrotados de novo pelo Japão — afirmou o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, durante uma reunião de seu Gabinete televisionada para todo o país, no qual o assessor de Segurança Nacional, Kim Hyun-chong, chamou as medidas do Japão de “afronta pública”.

Apesar de a independência sul-coreana ter ocorrido há mais de 70 anos e a colonização japonesa ter durado menos de três décadas, um peso ainda paira sobre a relação das duas nações. Em Seul, além dos usuais protestos antijaponeses nas principais vias públicas da cidade, os efeitos da animosidade passaram a ser notados na vida cotidiana. Diversos supermercados e lojas de conveniência limparam sua prateleiras de cervejas Sapporo e Kirin. Boicotes organizados a lojas populares como Uniqlo e Muji ganharam força nas redes e causaram queda estimada de 30% no consumo. Centenas de viagens para Hokkaido e Osaka foram canceladas na alta temporada, e houve relatos de postos de gasolina se recusando a abastecer carros Toyota.

Para os coreanos, uma desculpa sincera, aos moldes do que foi feito pela Alemanha em relação ao seu passado nazista, ainda se faz necessária para que os laços com o Japão sejam de fato pacificados. Episódios como o das “mulheres de conforto”, jovens coreanas raptadas por japoneses e forçadas à prostituição, são feridas abertas no inconsciente coletivo do país.

O Japão, do seu lado, alega que todas as mazelas de seu passado colonial foram resolvidas com a assinatura em 1965 do tratado que normalizou as relações bilaterais e forneceu a Seul US$ 800 milhões em recursos e empréstimos, parte da estratégia do então ditador sul-coreano, Park Chung-hee, para financiar os planos de desenvolvimento econômico do país.

Tóquio citou ainda, justificando suas restrições, ter preocupações com sua segurança nacional a partir da “administração inadequada” por Seul das exportações de produtos químicos sensíveis, incluindo o fluoreto de hidrogênio, que poderia ser usado para a fabricação de armas químicas por países sujeitos a sanções internacionais, como a Coreia do Norte, com a qual a Coreia do Sul voltou a se engajar ativamente nos últimos anos. A versão de um governo coreano que tenta usar a empatia dos coreanos com as vítimas da colonização para ganhos políticos e é irresponsável em suas deliberações com o norte-coreano Kim Jong-Un tem sido recorrente na mídia japonesa.

Apesar da trocas de farpas no campo econômico não ser novidade entre os dois países — o tsunami que destruiu a usina nuclear de Fukushima em 2011, por exemplo, foi citado sem bases científicas pela Coreia do Sul para proibir a importação de peixes de certos territórios japoneses, levando o Japão a acusar o país de usar o comércio como tática de retaliação política na Organização Mundial do Comércio —, o momento para discutir a relação não poderia ser pior. A economia mundial parece estar à beira de uma grande desaceleração devido à disputa comercial muito maior entre os EUA e a China, de modo que uma cooperação mais ampla entre as duas potências asiáticas seria imperativa para a manutenção do crescimento da região.

Se em um primeiro momento o presidente Moon Jae-In parece ter se utilizado do sentimento antinipônico para retomar sua popularidade — em queda diante da estagnação das tratativas com a Coreia do Norte —, apoiando as decisões de reparação histórica da Suprema Corte, agora terá que se preocupar em como manter a rede de suprimentos de suas principais indústrias sem demonstrar submissão à Tóquio.

Se o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, pode ter optado por antagonizar a Coreia e securitizar suas relações com o país na tentativa de dar espaço e voz para seus planos de revisão da Constituição pacifista de seu país, logo terá que se preocupar com os fornecedores japoneses que perderão participação em um de seus melhores mercados.

Disputa com efeitos globais

A disputa entre as duas potências asiáticas já começa a ter consequências globais. Interrupções na oferta de produtos de alta tecnologia produzidos pela Coreia do Sul tem potencial para atingir direta e indiretamente gigantes como Apple, Huawei e Sony, entre outras, na produção de smartphones, computadores e televisores. A Coreia do Sul é atualmente a segunda maior produtora de semicondutores do mundo, enquanto Samsung e LG Electronics detêm mais de 90% do mercado mundial de telas de LED.

Para o Brasil, o conflito pode alterar a dinâmica comercial com o leste asiático. Desde o ano passado a Coreia do Sul é nosso segundo maior parceiro comercial na Ásia, atrás apenas da China e superando o fluxo com o Japão, parceiro histórico na região. A Coreia do Sul também representa nosso segundo maior déficit comercial, motivado pelo alto consumo brasileiro de produtos tecnológicos sul-coreanos de alto valor agregado, ao passo que a Coreia importa sobretudo commodities.

Uma queda na capacidade coreana de suprir o mercado nacional, especialmente de semicondutores, pode alterar este cenário e a dependência do Brasil da indústria americana, a maior produtora global. O acordo comercial Mercosul-Coreia, que se encontra em negociação desde o ano passado, também pode ser afetado, dado que grande parte do interesse sul-coreano seria a ampliação do acesso ao mercado brasileiro de tecnologia.

O Globo


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