| 9 fevereiro, 2021 - 14:19

Nem na prisão, nem morto: Erivelto formou-se em Direito como ‘vingança’ por ser preso injustamente

 

“Foi um momento de desespero total, eu não imaginava que eu estava ali cumprindo pena por algo que não fiz. Eu fiquei umas duas semanas sem comer, chorando, não parava de chorar […] se eu permanecesse naquele caminho, eu sabia que a minha vida seria prisão ou a morte”. Nem na prisão, nem morto: o

Reprodução

“Foi um momento de desespero total, eu não imaginava que eu estava ali cumprindo pena por algo que não fiz. Eu fiquei umas duas semanas sem comer, chorando, não parava de chorar […] se eu permanecesse naquele caminho, eu sabia que a minha vida seria prisão ou a morte”. Nem na prisão, nem morto: o carioca Erivelto Melchiades trilhou outros caminhos e, agora, vê horizontes.

Nascido e criado no Morro do Cantagalo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, o homem de 36 anos recusou-se a carregar o estereótipo de bandido após duas passagens pelo sistema prisional – uma delas por um crime que afirma não ter cometido -, e resolveu “vingar-se”. A vingança? Estudar. Ele estudou muito e formou-se em direito, para começar a escrever um novo capítulo da própria história.

Figura popular entre moradores da favela Cantagalo, Erivelto tem alcançado ainda mais pessoas depois de contar parte da vida – das prisões ao curso de direito -, em uma postagem no Facebook. Ele conversou com o BHAZ, sobre a trajetória e contou em detalhes como foi passar mais de dois anos na prisão.

‘Crime não compensa’

Erivelto tinha 19 anos quando foi preso pela primeira vez, por porte ilegal de arma, no Rio. Ele conta que, à época, não conseguia emprego e que passou a trabalhar nas ruas, guardando carros e em outras atividades. Mais tarde, já sem perspectiva, pensou que o crime compensava, mas não foi o que descobriu.

“Eu procurava emprego e pediam experiência, mas eu não tinha experiência. Comecei a tomar conta de carro na rua. Nesses momentos, sem perspectiva, a gente pensa que a vida bandida é algo que vale a pena, mas a gente sabe que na realidade não é nada disso”, explica. “Foi o momento em que eu caí na cadeia sem saber o que era, de fato, o sistema prisional. A cela tinha capacidade para 17 pessoas e tinham 122 lá. Eu fiquei 21 dias desesperado, sem poder me locomover diante da lotação, além da comida péssima e condições insalubres. Eu vi que o crime não compensava de forma alguma”, relembra.

Erivelto passou pela primeira audiência do caso e recebeu liberdade provisória, já que estudava e tinha bom comportamento. Segundo conta, saiu da prisão decidido a mudar o rumo da vida. “Eu nunca mais queria me envolver com nada de errado. Saí e fui trabalhar como auxiliar de serviços gerais em uma escola da comunidade, retomei meus estudos”. Mas não seria a única vez na cadeia.

Preso de novo

O carioca levava a vida quando foi surpreendido em 2010, cinco anos depois da primeira prisão, com um telefonema para que fosse prestar esclarecimentos em uma delegacia. Ao chegar na unidade policial, foi informado de que seria preso novamente. Segundo conta, desta vez pagou por algo que não cometeu.

“Na delegacia, um policial disse que ‘a casa caiu’, mas fiquei pensando ‘que casa’, já que não tinha feito nada. Foi então que me informaram que existia um processo contra mim. A primeira informação era de que eu era procurado. Depois mudaram a tipificação para tentativa de roubo, mas não existia materialidade”, conta.

“Uma pessoa cansada de assaltos na região de Ipanema fez a denúncia e teria ido à delegacia na mesma data em que ocorreu o porte ilegal de arma, em 2005. Eu não assaltei ninguém, mas disseram ter me reconhecido na delegacia. A testemunha disse que, no assalto, tinham atirado na direção dele, e que eram dois assaltantes. A outra testemunha só sabia do assalto, nada sobre tiros. Mesmo com tantas dúvidas, eu apresentando atestado de trabalho, minha família, fui condenado”, diz.

“Foi um momento de desespero total, eu não conseguia imaginar que eu estava ali cumprindo pena por algo que não fiz. Eu fiquei umas duas semanas sem comer, chorando, não parava de chorar. Um detento me viu e foi conversar comigo, disse que o guarda não abriria a porta pra eu sair dali, que teria que viver como preso, como de fato era o sistema. Foi então que eu percebi que não existia ressocialização por meio do Estado”, explica.

Complexo de Bangu

A pena atribuída a Erivelto começou com sete anos em regime fechado, mas diminuiu por conta do bom comportamento. Ele foi interno do Complexo Penitenciário de Gericinó e ficou dois anos e dois meses no presídio, também conhecido como Complexo de Bangu. Lá, viveu dias nada agradáveis e lembra violações cometidas contra os privados de liberdade.

“São diversas as violações do Estado, desde ligarem a água uma vez ao dia apenas, a mesma água para beber e tomar banho. Deixavam presos ‘torrando’ no sol, muitas pessoas algemadas juntas em uma mesma viatura, diziam ser igual coração de mãe, que sempre cabia mais um. Tudo sempre no deboche. As necessidades eram feitas em um buraco no chão”, relata.

Segundo Erivelto, o sistema prisional trabalha para que haja reincidência, ao passo em que o Estado desassiste populações sem acesso a trabalho e educação. “Na cadeia mais se aprende coisas ruins do que coisas boas, a chamada mente criminosa. Tem pessoas ali que, de fato, não mereciam estar. Não existe uma divisão, estão juntas pessoas que cometiam pequenos furtos a grandes traficantes. Se eu permanecesse naquele caminho, eu sabia que a minha vida seria prisão ou até mesmo a morte”.

Retomando a vida

Erivelto explica que ao sair da prisão, pela segunda vez, mantinha na cabeça a ideia de mudar de vida. E a melhor forma, segundo ele, era usar a “revolta apaixonante” que sentia ao ler um livro sobre leis, ainda na penitenciária, e estudar direito. Uma trajetória em busca do que ele considera uma “vingança”, permeada de lutas, conquistas e autoconhecimento. “Não uma vingança com morte, com sangue, mas vingança para mostrar que por mais que fizeram um injustiça comigo, eu não sou aquilo. É para verem onde eu estou. Nem todo mundo que está sentando no banco dos réus é culpado”, diz.

O caminho até o curso de direito foi árduo. “Eu não tinha segundo grau completo, comecei a estudar e terminei. Em 2013 fiz vestibular e fui aprovado. Não tive dúvida, era a faculdade que eu queria cursar. Me formei em 2019, passei na primeira fase da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], mas, com a pandemia, vou fazer a segunda fase no próximo exame”, conta.

Erivelto conta que não dizia às pessoas que havia passado pela prisão, em uma tentativa de se reinserir na sociedade. “Eu não me identificava como alguém que passou pelo sistema carcerário, eu estava cheio de dívidas, nem sabia se poderia ser advogado”, conta. “Eu escondi isso tudo, aí no meio do percurso, no 7º período, caí na ilusão de esconder o passado com o intuito de ingressar em um estágio, eu queria seguir minha vida tranquilo”, relembra.

O carioca foi alvo de denúncias a respeito do tempo em que esteve privado de liberdade, mas conseguiu a resposta que tanto almejava. “Fizeram denúncias contra mim, dizendo que eu tinha passado pelo sistema carcerário. Com muito brilhantismo, um colega se disponibilizou e fez minha defesa, eu consegui permanecer com minha instrução”, diz.

“Os caminhos foram se direcionando, eu sabia que aquela injustiça mostraria, apesar das adversidades, que eu poderia dar a volta por cima e ajudar outras pessoas. Se a gente não lutar, a vitória não vem. É muito difícil, minha educação foi bem básica e, ao chegar na faculdade de direito, tive que me adaptar ao novo mundo e me dedicar para ficar bem qualificado. O direito surgiu dentro de mim muito por conta do que ocorreu comigo. É uma revolta apaixonante, eu não me imagino hoje em outro curso”, explica.

Horizontes

Depois de retomar os estudos como ferramenta para vingar-se das injustiças sofridas, Erivelto passou a atuar junto a movimentos sociais. Ele espera poder ajudar outras pessoas, a partir das experiências vividas, e integra uma frente contra o encarceramento em massa, além de ser diretor da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas. O carioca também já foi convidado para estar no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para participar de um projeto com egressos do sistema penal.

No radar de Erivelto está a criação de uma associação para amparar pessoas encarceradas, com cursos, palestras e outros suportes. “As pessoas me respeitam muito, me admiram e dão apoio para eu continuar, inclusive pessoas de outras localidades. A responsabilidade de você ser uma referência é grande, então estou trabalhando muito, estudando muito, ouvindo para conseguir ajudar muito mais”, diz.

O bacharel em direito defende que a favela deve ser olhada de forma diferente pelo poder público, bem como populações desassistidas. “A realidade da favela é diferente, peculiar, tem uma história ali”, afirma. “O poder público dá conta do número de presos e mortos, mas não apresenta um resultado efetivo a respeito do consumo de drogas. Ele coloca a favela no imaginário das pessoas como antro de violência”, argumenta.

Para Erivelto, é preciso repensar a política de drogas, mapeando e prevenindo o uso, bem como trabalhando a redução de danos. O carioca ainda acredita que as violações contra moradores estão ligadas à chamada “guerra às drogas”. “A gente tem um espetáculo diário, no café da manhã, no almoço. Quando tem tiroteio, o discurso é de que a polícia é atacada, mas quem mora na comunidade sabe muito bem que não é o que ocorre. As pessoas têm suas casas violadas, entram sem mandado, agridem e levam como se fossem traficantes”, relata.

Questionado sobre buscar reparação junto ao Estado, ele diz que por enquanto não pensa nisso. “Eu deveria ter sido inocentado, mas não fui. Eu estou seguindo meu rumo, se lá na frente eu decidir processar o Estado vai ser lá na frente”, conta.

Erivelto revela que, além de formar-se em direito, toda a experiência o fez se conhecer melhor. “Antes, eu era muito tímido, entrava nos locais desconfiado, era introvertido, e isso foi mudando com o tempo, essa revolta escondia uma nova pessoa dentro de mim, com coragem, que luta, que desembola”, conta. “Eu nunca aceitei esse estigma de marginal, se eu não quero aceitar preciso me posicionar. Mudei meu comportamento, comecei a me expressar mais e a querer buscar o melhor”,

Bhaz


Leia também no Justiça Potiguar

Comente esta postagem: