No Supremo Tribunal Federal (STF) os julgamentos começam antes da sessão. Quase sempre do lado de fora, na porta de acesso ao plenário, em frente à Praça dos Três Poderes.São feitos por seguranças que analisam detalhadamente a roupa dos que pretendem acompanhar os julgamentos, principalmente das mulheres. Não raro, educadamente, um deles informa: “A senhora não pode entrar vestida assim.”
Estudantes e jovens advogadas são maioria. Uma delas, flagrada pela reportagem, assistiria aos ministros pela primeira vez. Usava vestido de renda branco, pouco acima do joelho, e blusa com gola do tipo canoa e manga curta, que deixava parte dos ombros à mostra.
“Por quê?”, reagiu. O segurança apontou para os braços dela. “Se a senhora tiver um casaco”, disse baixinho. Ela não tinha. Saiu da fila visivelmente constrangida, fez uma foto da fachada do prédio e foi embora.
A cena é corriqueira e, segundo o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), não se trata de uma exclusividade do STF.
“Temos problemas gravíssimos no Brasil todo”, afirma Daniela Lima de Andrade Borges, presidente das Comissões Nacionais da Mulher Advogada. “No Rio de Janeiro, há pouco tempo, uma juíza estava medindo a saia das mulheres com régua”, conta ela, acrescentando que a comissão está levantando quais tribunais têm esse tipo de regra para que seja tomada uma medida conjunta pela entidade.
O caso a que a advogada se refere ocorreu no Fórum de Iguaba Grande, interior do Rio de Janeiro, no mês de outubro. A juíza e diretora, Maíra Valéria Veiga de Oliveira, colocou um aviso com a foto de uma mulher usando vestido, comprimento até o joelho, na entrada do prédio e determinou aos seguranças que proibissem o ingresso de mulheres que estivessem com saia ou vestido acima daquele limite.
A OAB denunciou o caso à Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RJ). Na época, a Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj) divulgou nota afirmando que a medida havia sido tomada pela juíza “em razão do uso recorrente de vestimentas impróprias no local”. Negou, no entanto, que ela tivesse autorizado os seguranças a medir as saias e vestidos das mulheres com régua.
Outro episódio recente, cita Daniela, foi registrado no Estado de Rondônia. Seguranças do Tribunal de Justiça (TJ-RO) teriam impedido a entrada de uma advogada com o argumento de que ela estava “com tudo para fora”. A mulher vestia blusa preta, justa ao corpo, com manga três quartos e calça preta comprida.
Nesse caso também houve reação da OAB. A entidade publicou nota de repúdio e afirmou que estava atuando “no enfrentamento das vistorias pelas quais as mulheres têm passado diariamente nas unidades judiciárias estaduais, que as expõe ao constrangimento, a situações vexatórias e abusivas”.
No STF, quando questionados, os seguranças informam que há uma norma da Presidência sobre o traje adequado para acesso ao plenário. Em nota, a assessoria do presidente, ministro Dias Toffoli, informa que a última alteração nas regras sobre as vestimentas foi feita em 2000, na gestão do ministro Sepúlveda Pertence.
Naquela ocasião, os ministros decidiram, por meio de medida administrativa, liberar às mulheres o uso de calça. Até então, só podiam vestir saia ou vestido. Funcionários mais antigos do STF contam que a antiga norma gerou “muitos constrangimentos” ao longo dos anos.
Um dos episódios, muito falado, teria ocorrido nos anos 70. Uma advogada do Rio de Janeiro teria ido ao Supremo exclusivamente para fazer a defesa em um dos casos que seria julgado. Ela usava calça comprida e blazer. Proibida de entrar, teria tirado a calça e entrado só de calcinha e blazer. Os funcionários, porém, já não sabem mais dizer se realmente aconteceu ou se a história foi se transformando com o passar dos anos. Mas ainda dá muito o que falar.
A regra dos anos 2000 libera o uso de calça, saia ou vestido sociais, mas exige que as mulheres usem blazer. Na época em que foi feita a mudança no regimento, só o ministro Marco Aurélio foi contra a maioria. Ele pretendia mais. Queria acabar também com a obrigatoriedade do casaco. Mas ficou vencido.
Levou tempo até que uma ministra inaugurasse a nova regra. Cármen Lúcia, a primeira a usar calça no plenário, só o fez sete anos depois. Ela escolheu um terninho preto e uma blusa da mesma cor, com detalhes em renda, e colar de pérolas. Virou notícia.
Se levar em conta o que consta na regra, propriamente dita, pode-se dizer que houve uma evolução. Os seguranças do Supremo costumam vetar o uso de blusa com manga curta ou cavada, mas liberam a entrada se a manga for comprida – mesmo sem o blazer.
“Mas isso faz pouco tempo“, diz uma advogada que prefere não se identificar. “Nem na gestão da ministra Cármen era permitido. Os seguranças costumavam emprestar blazer para quem estivessem sem. Eu mesma já passei por isso no começo da carreira. Emprestaram um que cabia quase duas de mim”, lembra.
Na nota enviada, a assessoria do presidente não menciona se há a intenção de novas alterações no regimento do STF. Diz apenas que existem exceções para as vestimentas culturais – “trajes indígenas e quilombolas, por exemplo” – e destaca que as regras valem somente para aqueles que acompanharem as sessões. “Para entrar nas demais dependências do tribunal, há uma flexibilidade maior.”
“É uma questão difícil”, avalia a advogada Cristiane Romano, sócia do escritório Machado Meyer, que atua constantemente nos tribunais superiores. “Por um lado há a liberdade no vestir, mas por outro lado há trajes adequados para ir a um tribunal, à festa ou à praia. Deveria imperar a regra do bom senso.”
A presidente das Comissões Nacionais da Mulher Advogada do Conselho Federal da OAB, Daniela Lima de Andrade Borges, entende que não cabe aos tribunais fixar regras para as vestimentas de advogadas ou advogados – com exceção para audiências e sustentações orais, em que há exigência de traje típico.
“A OAB entende que é competência dela regulamentar as vestimentas da advocacia. Existe inclusive decisão do CNJ [Conselho Nacional de Justiça] nesse sentido”, diz.
Para a advogada, as regulamentações “vêm com julgamento moral” e, muitas vezes, “dentro de um recorte de discriminação de gênero”. “São sempre nessa linha do tamanho da saia ou do decote”, enfatiza.
“Isso restringe o direito da mulher de acessar os tribunais. O exercício da profissão fica comprometido e ainda há o constrangimento, principalmente, se estiver acompanhada do cliente.”
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