O ministro Luiz Edson Fachin é o coordenador de um grupo no Tribunal Superior Eleitoral encarregado de verificar conflitos entre normas eleitorais. Tarefa nada fácil, diante da quantidade de regras sobre eleições no Brasil. Mas o trabalho do grupo, explica o ministro, não é propor alterações legislativas. Mas formas de resolver os conflitos pela via jurisprudencial. A tarefa é de harmonização, não de proposição, enfatiza. “A finalidade imediata não é propor novas leis. Temos tantas, precisamos a rigor cumpri-las.”
Em entrevista exclusiva à ConJur, Fachin nega que a Justiça Eleitoral tenha assumido o protagonismo das eleições. O protagonista da democracia, diz ele, é o povo. Mas reconhece que acertos precisam ser feitos. Como o excesso de decisões monocráticas, não só no TSE, que afastam políticos eleitos de seus cargos.
“Os tribunais devem primar pelas decisões colegiadas. A decisão monocrática somente cabe em casos excepcionais e deve ser, de imediato, posta à apreciação do colegiado, para referendá-la ou não”, afirma.
Fachin também discorda da análise de que o Judiciário assumiu papeis que não eram seus, construindo o que alguns críticos chamam de “juristocracia” — ou “Supremocracia”. “A questão central é autoridade com legitimidade, sem caos normativo. Não vejo degradação hermenêutica nem derrota com ares de ceticismo”, responde o ministro.
Leia a entrevista:
ConJur — Cada vez mais vemos eleições sendo definidas no Judiciário. Os casos são inúmeros, em todas as esferas. A Justiça Eleitoral tutela demais a vontade do eleitor?
Luiz Edson Fachin — Não. A soberania popular é o motor que faz a democracia mover-se dentro dos limites e das possibilidades da Constituição. Esse espaço político próprio não pode nem deve ser capturado pelo Judiciário. Mas a Justiça pode (e deve), quando chamada a se pronunciar, zelar pela legitimidade e normalidade das eleições, nos termos das regras constitucionais. A Justiça Eleitoral tem seu papel institucional democrático delimitado pela Constituição. Esse papel está relacionado a um dos requisitos a partir dos quais se define democracia – eleições recorrentes, livres, competitivas e justas – e Estado de Direito.
ConJur — É exagero, então, dizer que o Judiciário hoje tem protagonismo excessivo?
Fachin — Sim. Estão a ver somente um Judiciário que se tornou conhecido pelas notórias circunstâncias contemporâneas (e não apenas no Brasil. Há, por exemplo, o extraordinário livro de Antoine Garapon, O Guardador de Promessas, sobre o tema na França), mas há outros segmentos relevantes do Judiciário e da prestação jurisdicional que são ainda grandes desconhecidos da mídia e por isso mesmo da sociedade.
A questão central é autoridade com legitimidade, sem caos normativo. Não vejo degradação hermenêutica nem derrota com ares de ceticismo. Somente aqueles que se deixaram levar pela teoria do poder no campo normativo é que sustentam que andamos para trás. Não concordo. E não se trata apenas de buscar eficiência ou celeridade. Fazer justiça compreende cumprir prazos. Por isso, não se trata de tutelar a vontade do eleitor. E o fundamental é dar âncoras à democracia e à ordem constitucional. Nem mais, nem menos.
ConJur — Há um projeto de lei que pretende alterar a Lei das Eleições para disciplinar o uso de bases de dados pessoais para fins eleitorais. O que acha da ideia?
Fachin — O assunto não propicia que eu possa avançar demasiado sobre as controvérsias que se avizinham. Esse é um tema que se abre a diálogo extenso e distinto. Por ora, vamos tocar apenas num ponto: o direito aos próprios dados é um direito fundamental. Acessos indevidos ou violações afrontam a Constituição. Não me cabe fazer juízos prévios de matérias que poderão ser objeto de medidas judiciais, até mesmo em controle concentrado de constitucionalidade. Mas a administração da Justiça Eleitoral deve estar aberta às boas inovações tecnológicas. Seres humanos, porém, nomeadamente os eleitores, não podem, contudo, ser “reificados” a números ou a catálogo de informações.
ConJur — Decisão monocrática pode afastar político do cargo?
Fachin — Esse é um ponto importante. Todos os dias esse debate vem à tona. E a pergunta é muito oportuna. Não, não deve afastar. Os tribunais devem primar pelas decisões colegiadas. A decisão monocrática somente cabe em casos excepcionais e deve ser, de imediato, posta à apreciação do colegiado, para referendá-la ou não. Ao Judiciário cabe respeitar, nos termos da lei, os papéis desempenhados pelos atores na política, as pluralidades de concepções e as normas eleitorais vigentes, a partir do filtro da Constituição.
Nas investigações filosóficas, Wittgenstein fez referência à “divisão social do trabalho linguístico”, querendo afirmar que o uso socialmente determinado na comunidade dos falantes é que fixa o significado de certas palavras e que, em muitos casos, essa tarefa é delegada aos especialistas, nomeadamente na ciência.
ConJur — O senhor é coordenador do grupo de trabalho do TSE encarregado de identificar conflitos nas normas eleitorais em vigor.
Fachin — A experiência recente no STF repôs uma necessidade: sistematizar as normas eleitorais a partir de estudos sobre dissonância de interpretação nas diversas eleições pretéritas. A coordenação que conta com intensa participação dos ministros Og Fernandes e Tarcísio Vieira de Carvalho Neto. São conflitos que não demandam alterações legislativas e sim, tão somente, diálogos hermenêuticos dentro e fora dos tribunais para gerar mais estabilidade e previsibilidade.
ConJur — Já identificaram esses conflitos?
Fachin — Verificamos informações nos diversos eixos de tarefas e discussões, como a não recepção do artigo 4º do Código Eleitoral, na parte em que limita o alistamento aos maiores de 18 anos. Foi identificado também a incompatibilidade do artigo 13 do Código Eleitoral com o artigo 120, parágrafo 1º da Constituição, sobre o número de juízes dos tribunais regionais eleitorais.
A propaganda eleitoral aponta aparente contradição entre os textos que dispõem sobre limites na dimensão das propagandas que podem ser utilizadas, sendo o último referente especificamente aos adesivos em carros.
Já sobre financiamento de campanha, foram apontadas inconsistências no parágrafo único do artigo 35 da Lei dos Partidos Políticos, ponderando que os documentos intitulados “balanços financeiros” tecnicamente não existem. Além disso, a revogação tácita do artigo 237, parágrafo 2º do Código Eleitoral pelo artigo 22 da Lei Complementar 64/90, suscita dúvida sobre a permanência dos crimes previstos nos artigos 302 a 304 do Código Eleitoral diante da ordem econômica trazida pela Constituição de 1988.
Além disso, a adoção de termo inadequado e discriminatório pelo artigo 6º, inciso I, alínea ‘a’ do Código Eleitoral (inválido), aponta antinomia em relação ao Estatuto da Pessoa com Deficiência e verifica que o dispositivo legal não regulamenta de forma adequada a situação das pessoas com deficiência, especialmente daquelas cujo comparecimento obrigatório para alistamento eleitoral ou para o exercício do voto importe em ônus desproporcional.
ConJur — Já tem alguma proposta de sistematização e inovação legislativa?
Fachin — Não. A finalidade imediata não é propor novas leis. Temos tantas, precisamos a rigor cumpri-las. O Judiciário não legisla, pois a separação de poderes é norma elevada ao patamar de cláusula pétrea pela Constituição. Por isso, não se propõem alterações legislativas e sim de harmonização de entendimentos jurisprudenciais. Somente após o cumprimento das fases previstas com o fim de permitir um estudo apurado e um amplo debate com a comunidade é que serão apresentadas as conclusões e eventuais propostas, que não incluem, há que se esclarecer, apresentação de proposta de inovação legislativa.
ConJur — Haverá mudanças significativas na aplicação das resoluções do TSE nas próximas eleições?
Fachin — Não. Estamos mirando prioritariamente as eleições de 2020. Vamos com calma e prudência para dar estabilidade e previsibilidade aos resultados do trabalho. Não temos como objetivo projetar o resultado desse esforço nas eleições do próximo ano. O nosso trabalho será encerrado em 30 de setembro e o resultado será entregue ao tribunal e à comunidade interessada. Ademais, o escopo do trabalho desenvolvido pelo grupo não tem a pretensão de se sobrepor às instruções. Por ora, o objetivo é restrito e modesto: oferecer um quadro de normas e interpretação que ajudem a prestação jurisdicional. É uma contribuição à democracia e à Justiça Eleitoral. E eleições periódicas, com legitimidade e normalidade, são sintoma vivo de democracia em pleno vapor.
ConJur — Quando era presidente do TSE, o ministro Dias Toffoli convocou os ministros Luiz Fux, Rosa Weber e Luís Roberto Barroso para consolidar a jurisprudência do tribunal para as próximas eleições. Ele estava preocupado com as variações de entendimento de uma eleição para outra. Menos de cinco anos depois, o tribunal promove nova sistematização de regras. O que acontece? É a jurisprudência que muda demais, ou há reformas eleitorais demais?
Fachin — Sim, há inequivocamente essa dúplice constatação, mutações legislativas e oscilações de precedentes. Contudo, quanto às iniciativas anteriores, isso somente mostra que temos preocupação em comum. Tempos novos vêm ser demarcados pelas transformações tecnológicas a exigir novas respostas. À jurisprudência incumbe garantir igualdade e regularidade eleitoral.
Há diversas leis que não necessariamente consideraram uma conformação sistemática. Faz-se crucial organizar esse quadro normativo. Tenhamos isso nítido: o que estamos a realizar aqui é uma forma dos diálogos institucionais, garimpando sentidos de harmonia na interpretação da legislação. O papel da Justiça Eleitoral é essencial para isso, dentro dos limites legais, tendo em vista a função que executa de órgão encarregado da realização das eleições no país.
ConJur — O deputado Lelo Coimbra (PMDB-ES) levantou que entre 1989 e 2015 foram 14 reformas no sistema eleitoral. “Não ficamos duas eleições com o mesmo sistema desde que a Constituição foi promulgada”, segundo ele. Um sistema assim é sustentável?
Fachin — Não é. A crítica tem direção certa. Mas o sentido é outro. É preciso dar estabilidade e previsibilidade. A reforma eleitoral é tema próprio do Legislativo. As deliberações próprias do parlamento pertencem ao debate político. A teoria normativa não pode nem deve ser encapsulada pela teoria política. Ao Judiciário Eleitoral cumpre realizar a proclamação do legislador em seu duplo papel: justiça para o caso concreto e regulamentador para a gestão das eleições. Certas variações legislativas são próprias de uma democracia aberta, porosa e em solidificação. O importante é preservar a Constituição e as instituições democráticas.
Numa nação plural e aberta, num Estado verdadeiramente de direito democrático, nenhum juiz chamará para si a função exclusiva absoluta de guardador de promessas da Constituição, mas não cruzará os braços para ser vítima de omissão cega e o fará ciente de que não há justiça digna de tal nome sem democracia.
ConJur — O ministro Gilmar Mendes costuma dizer que as intervenções do Supremo em matéria eleitoral criaram um “sistema confuso”. Ele se refere principalmente à declaração de inconstitucionalidade da cláusula de desempenho e de permitir a mudança de partidos como ressalva para a perda de mandato por infidelidade partidária. O sistema é confuso? O STF contribuiu para que ficasse confuso?
Fachin — Não. O Judiciário atua quando chamado. O dogma da “última palavra” traduz essa posição de protagonista superlativado ao STF. Uma sociedade não abdica de seu poder de escolha na democracia representativa. Imaginar problemas ou saídas de cima para baixo é desprezar o sentimento democrático. Nunca é demais recordar que o Supremo não detém a última palavra sobre o projeto da Constituição — o Congresso, por exemplo, pode emendá-lo. O tribunal é, no máximo, partícipe da tarefa de distribuir confiança entre as instituições.
ConJur — Por quê?
Fachin — Democracia pressupõe ruídos, dissensos e liberdade, eleições livres, justas diretas e periódicas, instituições em regular funcionamento, garantia plena da liberdade de expressão e do acesso à informação, pluripartidarismo, participação ativa e imprescindível dos partidos políticos e da sociedade como um todo, se projetam, numa democracia, em sistema eleitoral organizado por “um conjunto de normas que define como o eleitor poderá fazer suas escolhas. As leis eleitorais de uma democracia demandam um mínimo de segurança e previsibilidade para saber quais são os eleitores aptos a votar; os critérios para apresentação de candidatos; as normas de acesso aos meios de comunicação; os mecanismos de controle de gastos de campanha e acesso ao fundo partidário; as normas para a divulgação das pesquisas; as regras e o alcance do incentivo e apoio à participação política das mulheres, com zelo.
Uma teoria operacional da norma requer que passemos por esse desafio: não cruzar os braços, numa omissão cega, nem se projetar no campo dos demais poderes e instituições, numa hipertrofia criticável. O ponto é o equilíbrio na legalidade constitucional que eleva a princípio normativo (parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição) a legitimidade e a normalidade das eleições.
ConJur — Na sua opinião, é um equívoco dizer que o Judiciário tem aumentado a incerteza?
Fachin — É, sim. Não concordo com isso. O parlamento não se resume a alguns parlamentares. O Judiciário não se reduz a alguns juízes. Estou a falar das instituições e não de pessoas historicamente localizadas ou situadas em outra ordem de preocupações. Esse conceito aritmético de certeza ou de incerteza se situa num tempo anterior ao idealismo kantiano. Não está na sociedade plural e complexa do presente. O mal é outro, o sintoma não está na incerteza. A patologia é o conjunto das disfunções derivadas do processo de diluição institucional em curso.
ConJur — A declaração de inconstitucionalidade do financiamento eleitoral por empresas é bastante criticada. Para os críticos, o Supremo derrubou o financiamento do sistema eleitoral, mas manteve o sistema de pé, o que o inviabilizou. Eles defendem que o melhor seria criar um sistema de controle, com mais transparência, do que proibir a doação de empresas. Faz sentido? Como montar um sistema eleitoral em que só eleitores possam doar (considerando que temos mais de 12 milhões de desempregados, fora os “desalentados”)?
Fachin — Antes de tudo, há um paralogismo na pergunta: país pobre, injusto e desigual não pode ser argumento para alijar eleitores e contaminar o financiamento eleitoral. A matéria foi definida pelo STF. E corretamente. Não há razões para promover a todo tempo oscilações. Precisamos promover confiança e respostas coerentes com um país réu de desigualdades, injustiças, concentrações de poder e de renda. É preciso mudar. Encontro nisso razões suficientes para aqui estar. Auxiliar no caminho para novas perspectivas. Estimular a vida política e pública. Portanto, como não há sistema perfeito, precisamos à exaustão levar a experiência como prova empírica e não ao sabor de conveniências de ocasião. Ter esse abrigo é cartografar a luz de uma geração, um ideário e um país de sentidos que ainda nos ilumina. Nesse continente de significados, nascemos e morremos muitas vezes. Assim se fez com algumas alegrias, mas também experimentamos o sabor ácido do atestado de algumas tristezas. Desafia-nos, pois, o contínuo renascimento apto a também inundar de necessárias cores este verídico mundo finito. Aos desalentados impende evidenciar que neles está o sentido de inclusão social, político e econômico.
ConJur — A Lei da Ficha Limpa melhorou o sistema político brasileiro?
Fachin — Sim, sem dúvida. Aplicou a Constituição que expressamente prevê a vida pregressa do candidato como pressuposto de participação eleitoral ativa. Pôs no caminho da política a moralidade pública e a vida pregressa do candidato. Traduziu uma nova era na democracia. Evidenciou os limites para os atores políticos numa sociedade democrática. Não basta, contudo, a lei em sentido formal. É essencial que se torne um modo de ser e de estar na política. O que está na base da Lei da Ficha Limpa, em meu ver, é a responsabilidade. Sob a autoridade das normas de direito constitucional democrático, é fundamental situar a responsabilidade política. E a responsabilidade pessoal (penal, civil, administrativa, ou de qualquer natureza normativa), vê o réu em sua particularidade, como escreveu a professora Rosângela Chaves em sua tese sobre Hanna Arendt.
ConJur — A Ficha Limpa não estimula intervenções exageradas do Judiciário na política?
Fachin — Não, não há excesso. É certo que há falhas pontuais, e, portanto, erros devem ser corrigidos. O ator central da política é o eleitor e o veículo imprescindível, o partido político. O papel do Judiciário é o de auxiliar o funcionamento dessa máquina eleitoral. É uma forma de competição legítima, democrática, que tem um árbitro isento e independente. É preciso, portanto, levar a sério essa legítima competição.
Reitero o que tenho sustentado nessa seara: as regras que fixam os limites das ações de cada ator do processo eleitoral exercem um papel central. E uma qualidade inafastável desse sistema é mesmo a certeza. Certeza que não deve ser aritmética, mas a expressão da confiança. Ainda que o Direito seja linguagem e que a marca típica da linguagem seja a sua textura aberta, a redução das incertezas é um dever, principalmente, da jurisprudência. Em uma campanha eleitoral, é plausível que os candidatos tenham dúvida quanto à melhor estratégia para conquistar a afinidade do eleitor, mas não podem ter relativamente aos limites das estratégias possíveis.
Conjur