Era agosto de 2018 e diversas viaturas cumpriam mandados de busca e apreensão na região norte da ilha de Florianópolis quando moradores avisaram os policiais de que havia ali uma casa que funcionava como ponto de venda de entorpecentes. De fora do imóvel, um dos agentes olhou pela porta aberta e viu sobre uma mesa uma faca e um prato com resquícios de cocaína.
A cena, que ele descreveu em juízo como “cenário típico de tráfico de drogas”, foi o que deu à polícia fundadas razões para invadir a residência sem autorização judicial ou consentimento do morador. Dentro do imóvel, foram encontrados 92g de crack, o que levou à condenação do réu à pena de cinco anos, oito meses e um dia de reclusão, em regime inicial fechado.
Essa situação foi analisada pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em julgamento de dezembro do ano passado, e exemplifica o trabalho dos ministros ao decidir casos em que a violação de domicílio tem sido justificada por flagrantes policiais feitos de fora da casa — por frestas no portão, janelas abertas ou por cima do muro.
Relator do recurso especial julgado na 6ª Turma, o ministro Antonio Saldanha Palheiro avaliou a situação e concluiu que “não é crível que de fora da residência fosse possível divisar ‘1 faca e 1 prato com resquícios de cocaína’, em contexto de traficância, e não de uso”. Logo, a polícia não tinha razões para crer que havia ali a prática de tráfico de drogas.
“A diligência apoiou-se em meras denúncias anônimas e em uma alegada visualização de atos de tráfico, circunstâncias que não justificam, por si sós, a dispensa de investigações prévias ou do mandado judicial”, argumentou o ministro. A votação, unânime, levou à anulação da condenação, pela nulidade das provas.
Olhos de lince
Essa análise decorre da posição adotada pelo tribunal desde 2021. Os ministros passaram a ser mais criteriosos com as razões usadas para justificar a invasão de domicílio de alguém, de modo a evitar a conivência com ataques aos direitos fundamentais que eram, desde sempre, praticados pelas polícias no combate ao crime e tolerados pelo Poder Judiciário.
A análise da validade das razões usadas para invadir a casa de alguém é sempre feita caso a caso e dentro dos limites do processo — na maioria, em Habeas Corpus, que não permite produção de prova e tem cognição limitada. O tema tem se mostrado presente em meio às centenas de recursos apontando esse tipo de nulidade.
Outro caso julgado pela 6ª Turma que terminou com a declaração da nulidade das provas envolveu policiais em patrulha que viram uma pessoa correr para dentro de casa. Da rua, eles conseguiram ver pela janela porções de crack sobre a mesa, então invadiram o local e apreenderam 16g de cocaína, elemento que embasou a condenação do réu por tráfico.
O ministro Saldanha Palheiro, relator do Habeas Corpus, mais uma vez afirmou que o contexto não aponta para a conclusão inarredável de que se praticava crime dentro da residência. “A diligência apoiou-se em meras denúncias anônimas e na visualização de objeto que parecia ser droga, circunstâncias que não justificam, por si sós, a dispensa de investigações prévias ou do mandado judicial.”
O acórdão ainda concluiu que “mais grave é a intromissão indevida na intimidade domiciliar sob a alegação de que foi possível divisar pequena quantidade de drogas pela janela e ainda assim concluir não se tratar de manuseio de drogas para consumo, mas, sim, de flagrante delito de tráfico”. A votação foi também unânime.
Um terceiro caso análogo julgado pela 6ª Turma em 2022 foi noticiado pela revista eletrônica Consultor Jurídico: um homem foi preso e condenado porque abriu a porta do seu apartamento para policiais, que viram comprimidos de ecstasy dentro do imóvel e deram o flagrante. Ele foi absolvido pelo STJ.
‘Molhou! Joga fora!’
Nem sempre, porém, os flagras de fora da casa levam à anulação das provas. A 5ª Turma manteve a validade do ingresso de policiais numa residência depois de eles verem, por uma fresta no muro, pessoas conhecidas no meio policial pelo envolvimento com o tráfico ilícito de entorpecentes em ação.
Essa cena fez parte da apuração prévia feita na hora pelos agentes públicos. Eles receberam denúncia anônima sobre o ponto de drogas. Na frente do local, observaram seguidas movimentações suspeitas. Relator, o desembargador convocado Jesuíno Rissato considerou válidas as conclusões de que havia ali um crime sendo praticado — o que ficou comprovado posteriormente.
Em outro Habeas Corpus, o colegiado validou o flagrante ocorrido durante uma campana feita em uma casa em que traficantes armazenavam grande quantidade de drogas. Eles tinham a informação de que o transporte do entorpecente seria feito em dois carros, um branco e um preto. Ao olhar por cima do muro, viram os dois na garagem e perceberam até tabletes de droga dentro de um dos veículos. “Tais circunstâncias não deixam dúvidas quanto à existência de fundadas razões para o ingresso domiciliar”, concluiu o ministro Reynaldo Soares da Fonseca.
Conjur
A 5ª Turma também validou a invasão de domicílio feita por policiais que receberam denúncia sobre a prática de tráfico, foram até a casa do suspeito e chamaram por ele. Ao ver quem estava do lado de fora da residência, o réu gritou “Molhou! Molhou! Joga fora!”, e correu para dentro.